24 de nov. de 2008

A Dieta do Cartão

Chega um dia na vida de uma mulher em que ela pára na frente do espelho, olha o jeans novo, a blusa nova, o sapato novo, o colar novo e vê que não dá mais. Definitivamente, não dá mais para comprar tanto.
É o que aconteceu com Marina. Ela está linda. Já o seu cartão de crédito ficou estufado, inchado, roliço, quase explodindo. A fatura vai vir com papadas de papel. Talvez até o carteiro se negue a entregar por excesso de peso.
Marina sofre. Ela sabe que precisa tomar uma atitude drástica: cortar vitrines e tirar do seu cardápio os creminhos, batons, brincos e bolsas consumidos sem motivo aparente. Melhor nem esperar a segunda-feira para começar a Dieta do Cartão. De agora em diante, só uma folhinha de cheque por semana e um magro dinheirinho na carteira para as necessidades vitais. Marina andava assinando seu nome sem sentir o gosto das compras, já salivando pelo próximo vestido. Agora vai ter que se reeducar. E aprender a contar moedinhas como quem conta calorias. Para quem cresceu fazendo dieta, é mais fácil mudar hábitos econômicos usando a experiência adquirida. Marina vai sofrer nos primeiros meses, vai ter que recusar convites para ir no shopping, vai ter crises de abstinência só de pensar em vitrines e certamente vai assaltar um balaio de ofertas no meio da noite. Depois vai se sentir melhor. E assim que os resultados começarem a aparecer, ela vai poder soltar o cinto e ver que ele não está tão fora de moda assim. Se uma mulher consegue sobreviver sem carboidratos, tudo é possível. Marina já passou meses longe de pão e quase virou uma proteína de salto alto. Já fez a Dieta do Abacaxi, a Dieta de Beverly Hills, a Dieta das Cores, a Dieta da Ophra. Mas sua preferida sempre foi a Dieta dos Números: dois pares de sapato em três vezes, oito regatas na liquidação, cinco lingeries em uma mais duas, um par de brincos novo uma vez por semana.
Na Dieta do Cartão, o jeito é fechar a carteira e se deliciar com as compras dos outros. Sim, é permitido curtir as últimas aquisições da melhor amiga desde que não se caia em tentação.
Marina, você consegue. Só não experimente nada.
Outro segredo de qualquer dieta é o exercício. Deu vontade de comprar? Então mexa-se. Marina abre gavetas e portas, empurra para lá e para cá os cabides, cruza e descruza os braços tentando achar algo semi-novo, sobe em um banco para alcançar o que tem esquecido na parte de cima do armário. Customizar peças que não se usa faz tempo é um grande truque para acalmar os impulsos consumistas.
Com o passar dos dias, Marina vai descobrir que os armários dilatam como os estômagos. Se ela parar de colocar coisas novas dentro, ele volta ao tamanho normal e ela não vai sentir tanta fome de compra. Pendurar o extrato do cartão na porta do armário também é uma dica excelente. Se o valor do extrato for bem polpudo e repugnante, vai ter o mesmo impacto de colocar uma foto gorda da Marina porta da geladeira. Isso se ela fosse gorda, mas não. Tem um corpinho lindo e tudo que veste fica bonito. O que é uma bela desculpa para comprar o que vê pela frente.
E não é que a crise de abstinência veio mais cedo que o esperado? Nesse momento Marina treme só de se imaginar chegando em casa cheia de sacolas. Nos seus devaneios mentais, vira tudo em cima da cama e fica ali saboreando cada peça nova. Suas mãos suam frio ao lembrar do delicioso ato de tirar as etiquetas de preço – ela pode até ouvir o barulhinho do tag de plástico arrebentando e libertando a saia do R$ 59,90.
Pobre Marina, que saliva pensando numa meia nova. A embalagem de plástico que abre tão convidativa, a tesourinha para cortar aquele ponto de linha que une os dois pés da meia, mais uma etiqueta de preço para arrebentar. Hummm... Marina comeria um código de barras inteirinho agora.
É só dar tempo ao tempo. Ela vai conseguir perder uns quilinhos de contas e se sentir mais leve. É só ter persistência e disciplina. A Dieta do Cartão funciona até para a mulher mais consumista. Marina, onde você vai? Não, não! Volte aqui, Marina. Você recém tomou café da manhã. O shopping nem abriu ainda!

14 de nov. de 2008

Terminações nervosas

Querida Anete, lembra quando rimei joanete com Anete e você morreu de rir? Isso foi há tanto tempo. Acho que nunca contei que essa rima não veio assim, do nada. Treinei muito na frente do espelho. Sou um cara ruim de improvisos. Cotonete, colchonete, mobilete, patinete. Uma semana sem conseguir achar novas palavras. Daí veio o joanete. Sabia que você ia achar graça. O mesmo não aconteceria se eu falasse em Bernardete e Margarete, as outras rimas que o Luisão sugeriu – coitado, ele só estava tentando ajudar.
Naquela noite, o meu joanete e a sua risada me deram coragem. Passei o braço por trás do encosto do sofá e rimei queijo com beijo. Você ia dizer algo como “ai que amor!” e minha boca chegou primeiro. Se eu fechar os olhos agora, vejo tudo isso acontecendo de novo, como num filme. Sinto até o seu gosto: morango recém tirado da geladeira. Sorte que você estava sem batom na hora.
Até hoje não sei se tocou a campainha da porta ou se foi dentro da minha cabeça. Eu ouvia coisas enquanto descobria o gosto da tua língua, o lisinho dos teus dentes. Beijei você daquele jeito porque não sabia o que fazer depois. Pegar o controle remoto e trocar o canal da TV não dava. Fingir que estava com vontade de ir no banheiro, também não.
Então preferi beijar até ficar sem fôlego. Eu sempre fazia isso dentro da piscina (trancar a respiração, não beijar). Naquele momento, a casa podia ser invadida por alienígenas canibais. Meu único medo era prender a língua no seu aparelho ou abrir os olhos e ver sua cara de decepção.
Mas não. Você disse alguma coisa que eu não entendi e me beijou de novo. Quando seus pais chegaram do supermercado, acho que estava escrito na nossa testa que a gente tinha se beijado. Sem falar no monte de almofadas espalhadas pelo chão. O beijo começou no joanete e quase terminou nas suas coxas, nas suas costas, na sua barriga macia.
Não sei por que estou lembrando disso agora. Não param de vir cenas na minha cabeça, de repente virei um flash back humano. Vejo a nossa viagem pra Noronha (e pra Madri, naquele albergue onde roubaram os nossos únicos pares de tênis), eu te ensinando a dirigir no chevetinho azul emprestado do meu primo, o dia em que você pintou o cabelo de ruiva só porque eu contei que tinha tara por ruivas, a vez em que nós dois nos encontramos sem querer no centro, a cama que a gente quebrou na casa da praia.
Anete, não vai embora desse jeito. Deixa eu pensar em outras rimas, deixa eu ir atrás de um dicionário com vinte mil palavras que terminem em ETE. Você riu do joanete, eu posso ser um cara engraçado de novo. Anete, dá para mim uma segunda chance. E uso calça cigarrette. Faço frete e teste para chacrete. Eu viro teu marionete. Esqueço o basquete. Aprendo a fazer omelete. Baixo o meu topete. Só não posso rimar meus dias com noites vazias.

13 de nov. de 2008

Confissões

-Eu minto, padre.
-Mas nem entrei no confessionário ainda…
-Desculpe, é que mentir está me atormentando.
-Que tipo de mentiras?
-Minto para os meus filhos que eu passo fio dental.
-Só isso?
-Só?! A mesma mentira noite após noite? Cheguei a fazer o cálculo, se eu viver até os 90 anos e repetir essa mentira diariamente são 5 anos de mentira na minha vida!
-Eu quis dizer que, num mundo com tanto ódio e guerras, usar fio dental não é tão grave assim.
-Uma mãe que mente para os próprios filhos é gravíssimo! Eu devia dar o exemplo. Já nem consigo me olhar no espelho quando entro no banheiro…
-Então por que a senhora mente para eles?
-Com todo o respeito, se o senhor tivesse filhos ia ver o que é bom.
-A maternidade é um presente sagrado.
-E um presente sagrado fica gritando e testando os limites da gente?
-Imagino que a senhora deva fazer muitas coisas boas para compensar…
-Sim, claro… Parar no sinal vermelho e não estacionar em fila dupla contam?
-Eu diria que é sua obrigação.
-Tá vendo? Minto até para padre! Eu parei em fila dupla na frente da igreja.
-Que outros pecados abalam sua consciência?
-Minto para os meus filhos que eu comia salada na idade deles. Minto que eu via pouca televisão e dormia cedo. Minto que eu tomava remédio sem reclamar. Viu, o fio dental não é nada.
-A senhora não é uma mentirosa. É só uma peregrina cruzando o árduo caminho da educação. Alguém já disse que…
-Que ser mãe é padecer no paraíso?
-Deixe o paraíso de fora. Alguém já disse que ser mãe é dureza.
-Eu preciso de ajuda, padre!
-O que a senhora precisa é começar a usar fio dental na frente dos seus filhos.
-Eu odeio fio dental. Não dá para rezar e pronto?
-E tem mais: sua penitência vai ser comer salada, ver pouca TV, dormir cedo e tomar remédio sem reclamar.
-Que saco!
-Respeito, por favor, estamos dentro de uma igreja.
-Desculpa. Amém.
-Amém, não. Amendoim. Tem um no seu dente.
-Perdão, padre!
-Vamos parar com a confissão por aqui.
-O senhor não vai me dar perdão?
-Melhor dar o fio dental da sacristia… acabo de ver uma casca de pinhão entre os seus dentes.

11 de nov. de 2008

Churrasco

-Olha que beleza!
Antônio veio da churrasqueira mostrando o espeto de picanha como se fosse um troféu. A carne parecia mesmo uma delícia, tostadinha por fora e provavelmente vermelha por dentro, como anunciava o sangue pingando no chão.
-Que cabeça, esqueci de bater o sal…
E lá se foi ele com sua picanha de volta, fazendo outra trilha. Olhando para o chão, dava para adivinhar todo o trajeto do assador nas últimas duas horas. Manchas pretas de carvão quando ele foi colocar o saco vazio no lixo, gotas de água depois que lavou os espetos, migalhas de pão com alho por tudo.
-Gente, essa picanha está se desmanchando de tão macia!
Desde que decidiu fazer um churrasco para receber os tios de Minas que viriam passar alguns dias em Porto Alegre, Antônio só pensava nas providências a tomar. Calculou e recalculou a quantidade de carne por pessoa. Se perguntou mil vezes se comprava salsichão de frango ou de porco, se fazia cebola no espeto, se não era demais coração de galinha, se usava sal grosso com ou sem tempero.
A sua tia só gostaria de fazer uma pergunta. E fez, apesar dos olhares que o tio Adão lançava sempre que queria evitar assuntos polêmicos.
-Toninho, por que na sacada?
-Por que o quê, tia Rosa?
-A churrasqueira. Na sacada.
Que pergunta, pensou Antônio. Podia ser estranho para um mineiro, mas para um gaúcho era perguntar porque o sol é redondo.
-Vocês não comem churrasco em churrascaria?
-Claro que sim. Mas aqui todo mundo tem sacada com churrasqueira.
-Se não tivesse a churrasqueira, cabia até um sofá na sacada.
Tio Adão levantou. Para ver se mudava o rumo da conversa, foi mexer nos espetos.
-Essa picanha sai ou não sai, gente?
-Tia Rosa, gaúcho que é gaúcho tem sacada com churrasqueira.
-O certo não é fazer churrasco no chão, como eles fazem no interior?
Antônio bateu o sal da picanha. Sua vontade era enfiar o espeto na garganta da tia.
-E como tem vento nessa sacada! Enche a sala de fumaça…
Tio Pedro não sabia onde se meter. Antônio já nem disfarçava a raiva. O churrasco estava pronto há horas e ele continuava afiando o facão.
-Rosa, quer fazer o favor de ficar quieta? Olha que vista linda!
-Por acaso não posso achar estranho churrasco de sacada?
-Rosa…
-Adão, você mesmo viu. Tem churrascaria em cada esquina!
Depois que os ânimos se acalmaram, todos sentaram na mesa. Para se desculpar, tia Rosa pegou o maior pedaço de carne. A cebola, o salsichão, a salada, o coração, ela nem tocou.
-Toninho, tem arroz?
-Arroz?
-Uai… não se come churrasco com arroz?
Da próxima vez, Antônio jurou que ia servir pão de queijo congelado para aquela gente.

10 de nov. de 2008

Aos Doze

-Mãe, quero tirar o bigode.
Olhei para os dois agrupamentos de penugem entre o nariz e a boca do meu filho. Depois olhei para o visor do meu celular, procurando data e hora para registrar imediatamente aquilo no cérebro - pasta momentos inesquecíveis de mãe.
Analisando friamente a questão, ele passou o ano dando indícios de que não era mais o menininho de sempre. Começou a ir a festas no clube. A usar desodorante. A pedir privacidade. A fechar a porta do banheiro. Sem falar nos outros bigodinhos que apareceram pelo corpo. E dos copos derrubados. E dos abraços de cão São Bernardo, que quase me tiram do chão. E do tênis número quarenta que ele comprou semana passada. Eu ainda podia sentir um cheirinho de pomada de assadura pela casa. E de lencinho umedecido. Danoninho. Tip-top azedinho de leite. Bigode de gatinho desenhado pela profe da escolinha.
-Ouviu, mãe? Quero tirar o bigode.
Péssima hora para devaneios uterinos.Tinha uma boca rosada, carnuda e com um projeto de bigode esperando minha resposta. Gilete ou barbeador? Com a mão direita eu raspo o guri e com a esquerda eu tiro foto? Com ou sem flash? Azuleno pra acalmar a pele ou anestesia local pra acalmar a mãe?
-O pai disse que tirando com pinça não nasce mais.
Peloamordedeus, não era a melhor hora para eu explicar os princípios básicos da depilação para os dois. Ou melhor, para os três, porque meu filho caçula estava ligadíssimo em tudo, já procurando o seu bigode no espelho.
Nem preciso dizer que a família inteira foi para o banheiro. Após uma breve discussão sobre dor e folículos capilares, optamos pela maquininha de aparar cabelo. Rápida e indolor, como pedia a situação. Ainda tive o senso de humor de só tirar um dos lados do bigode pra gente dar risada. Depois passei a maquininha pro pai da criança concluir o serviço. E não é que o ex-bigodudo ficou ainda mais lindo?
Nove de novembro de 2008. Um domingo que poderia ter sido igual aos outros, mas entrou para a história. A essa altura, nas camadas mais profundas da epiderme, os hormônios do meu filho estão tramando as próximas surpresas. Podia ser pior. Ele poderia ter dito que queria camisinha.

Orgulho da mãe

Para a dona Clotilde, o mundo se dividia entre as pessoas que viam novela e as que ainda iam ver. Sábia mulher. Para quem duvidasse, ela tinha um exemplo dentro de casa. A filha Jane, que sempre se recusou a permanecer no mesmo recinto que um galã e uma protagonista.
Sangue do seu sangue, aquela garota não podia ser imune a uma boa trama. Nascida em uma família que se orgulhava de ter cedido a calçada da frente para a gravação da primeira cena de beijo do então desconhecido Tony Ramos, Jane precisava gostar de novelas. Era o que todos esperavam dela. Seu nome foi escolhido em homenagem a Janete Clair, ícone do diálogo bem-construído.
Só para implicar, na hora da novela Jane ia dormir, ler, falar no telefone, lavar louça, tomar banho, fazer qualquer coisa que não tivesse uma música-tema ao fundo. Dona Clotilde, que achava chato ver novela sozinha, apelava: contava mais uma vez das terríveis dores que sentiu no seu parto. E, nem que fosse por consideração, pedia que a filha sentasse ao seu lado no sofá. Com ar de superioridade, Jane dizia que não ia dar os melhores anos da sua vida ao Projac.
-Depois da novela eu te deserdo, menina!
-Depois da novela! A senhora só sabe dizer isso!
Dona Clotilde aumentou o volume e, feito a pior vilã da teledramaturgia brasileira, rogou uma praga para a própria filha: “um dia essa daí vai viver nas novelas.”
No dia seguinte, Jane acordou estranha. Só falava frases feitas. Suas roupas, seu quarto, tudo estava diferente. Bem ou mal, tinha um Porsche conversível estacionado na garagem. Aquilo podia ser delírio de fome, quem mandou dormir de barriga vazia? Foi para a cozinha e a mesa estava posta para o café da manhã, com um empregado de cada lado. Mordeu o pãozinho e ele era de resina. A geléia também! Tudo ali era falso. Para completar, ela ouvia sempre a mesma música irritante, sem saber de onde vinha. Jane saiu correndo para a rua, entrou no carro e podia jurar que estava sendo seguida por uma câmera. O mais estranho é que alguém gritou “silêncio, gravando!”.
Às vinte horas e cinquenta minutos, dona Clotilde ligou a TV e não acreditou quando viu a filha dentro da novela. Reconheceu o corte de cabelo, as roupas, o cenário: sua Jane fazia parte do núcleo rico!
-Filha, tá me ouvindo?
-Eu não mereço o Jorge Augusto, mami.
-Você nunca me chamou de mami. E quem é esse Jorge Augusto?
-Sei lá, mandaram eu dizer isso. Com tom de voz emocionado. Você não acompanha essa babozeira!?
Dona Clotilde buscou o jornal do dia e abriu rápido na página com o resumo das novelas. O capítulo de hoje estava imperdível. Sua Jane iria atropelar Pedro Miguel e conhecer o médico Jorge Augusto a caminho do hospital, por quem se apaixonaria perdidamente. Se tudo desse certo, eles tinham grandes chances de terminar a novela juntos.
-Janinha, esquece o beijo técnico! Vai com tudo, minha filha!

7 de nov. de 2008

Bom dia só se for pra você

No mundo idealizado por Rosaura, o Teleprompter seria adaptado para qualquer situação em que ela precisasse falar por mais de um minuto, a bancada seria alta o suficiente para tapar o terrível terninho que a obrigavam a vestir e as câmeras não teriam luzes vermelhas atraindo seu olhar. Ou melhor: as câmeras seriam proibidas de funcionar antes das 10 da manhã.
Se você não entendeu, eu explico: Rosaura é uma promissora e revoltada apresentadora de telejornal. Promissora porque ela tem jeito para a coisa e revoltada porque o telejornal entra no ar das 06:15 às 06:22. Quem em sã consciência quer ver Rosaura tão cedo? Nem seus pais, ela desconfia. A maquiagem feita com cuidado não disfarça suas gigantescas olheiras – duas manchas roxas carinhosamente apelidadas de Tim e Maia.
Para entrar tão cedo no lar dos telespectadores, por sete miseráveis minutos, Rosaura precisa sair da sua casa às cinco horas. E acordar antes das quatro. E dormir antes das dez. E não ter vida social. E desgraçadamente perder o sono na mesma hora aos domingos.
Agora você entende por que aquilo aconteceu? Foram as circunstâncias. Rosaura cochilou ao vivo, em rede nacional de televisão. O homem da previsão do tempo tinha acabado de comentar sobre a frente fria que vinha da Argentina e a câmera voltou para Rosaura. No exato momento em que seus olhos pesaram como duas bolas de ferro. A cabeça despencou na bancada. A caneta voou longe. Rosaura não chegou a babar porque cortaram a imagem antes. Mas o técnico de som não foi tão rápido e deixou o ronco captado pelo microfone de lapela ir para o ar por quatro desconcertantes segundos, junto com o logotipo do telejornal.
Na faculdade, o professor de Jornalismo I deveria ter advertido: se um dia vocês conseguirem a tão sonhada vaga numa bancada de telejornal, mesmo que seja num horário infame, nunca durmam no ar. Lavem o rosto, aumentem o tom de voz, caminhem pelo cenário, finjam que estão sendo atacados por um mosquito e dêem tapas no próprio rosto. Improvisem. Não durmam jamais.
Agora Rosaura espera a repercussão do incidente. Já são quatro da tarde e ninguém telefonou comentando. Ninguém! A audiência do programa não precisava ser baixa desse jeito. Seus pais poderiam ter ligado. E ligado outra vez, fazendo voz diferente. A tia Carmem também poderia ter se manifestado. Ela jurou que assiste o programa todos os dias. Se amanhã de manhã Rosaura ainda tiver o emprego, vai pedir desculpas no ar. Ou então deixar um travesseiro por perto.

4 de nov. de 2008

Herança

Naquela noite, a escada não rangeu em sinal de respeito. Estavam todos ali, a ala do contra de pé e os puxa-sacos sentados. As crianças ficaram atrás da porta, esperando para ouvir cada detalhe.
O advogado foi o último a chegar. Entrou solene, cumprimentou a família com um aceno de cabeça e fez o sinal da cruz quando passou pelo porta-retrato da falecida. Depois sentou na cabeceira da mesa e tirou um papel da sua maleta de couro.
-Vou pular aquele bla-bla-blá inicial, se vocês permitem. E já aviso que não tem reclamação. A velha registrou tudo direitinho, mudou o texto cinco vezes. O que ela decidiu está decidido. Quem é a Geórgia?
-Sou eu!
-Ih, menina. Ela deixou as células adiposas para você.
-Cadela!
-Não seja mal-agradecida. Essas células adiposas estão há gerações na família.
A outra saiu chorando, melhor seria se tivesse saído correndo. Foi para o banheiro vomitar o que tinha no estômago.
-Cadê o Arnaldo?
-Eu.
-Nada pessoal, mas se fosse eu marcava urgente um eletro de esforço. A falecida deixou para você as artérias entupidas.
Uma risadinha abafada veio do fundo da sala. O advogado se virou e encarou o cabeludo.
-Você deve ser o Leonardo.
-Eu mesmo.
-Aproveite essa peruca farta. Você herdou a calvície.
-Não pode!
-Está no seu DNA. Perda prematura dos folículos capilares. Eu já vejo as entradas dizimando esse cabelão.
E assim, contra a vontade de todos, o testamento distribuiu a herança genética igualmente. A artrose, a miopia, o gênio difícil, o dedão do pé virado para fora, o nariz-batata, a mordida cruzada, a enxaqueca crônica, o sopro no coração, a estatura abaixo da média.
-E os olhos azuis, ficaram pra quem?
-A pele boa?
-Os dentes fortes?
-A pernas sem varizes?
O advogado se retirou do recinto. Ainda estava para nascer quem ia herdar ouro puro.

3 de nov. de 2008

Buzina da vida

Olha que ironia. Para renovar sua carteira de motorista, forçaram Alice a estacionar em local proibido: uma sala de aula apertada com trinta adultos com cara de criança que aprontou no trânsito.
Alice não tinha multas e manejava muito bem a embreagem em aclives. Até sua foto na carteira antiga não era das piores. Nem por isso o novo código de trânsito deixou de punir essa exemplar motorista inutilizando horas preciosas da sua vida.
Por três noites de quatro longas horas cada, Alice teria que ficar em fila dupla com estranhos. Ela não sabia se eles também gostavam de cantar dentro do carro, se compravam bergamota na esquina, se passavam cera líquida, se usavam buzina de vaca.
De um lado, novatos que precisavam aprender alguma coisa. De outro, macacos velhos que tiveram suas carteiras apreendidas e não havia escapatória. E no meio a Alice, que podia estar em casa vendo novela. Mas a covarde ficou com medo de fazer a prova e bater de frente com questões de física. Dois corpos não ocupam o mesmo espaço. Correto? E se o espaço fosse a sua cama e os corpos em questão, o de Alice e seu marido?
Quando a aula começou e o ventilador de teto deu a primeira rangida, ela se imaginou subitamente dentro de um porta-malas apertado onde passaria um bom tempo até ser resgatada pelo relógio. Para completar, sentiu uma claustrofobia gramatical: o professor terminava cada frase com a palavra “exatamente”.
Os assuntos variavam. Legislação. Cruzamento perigoso. Neutralização do ponto cego. A regra de olhar para os três retrovisores a cada sete segundos. Mas o que Alice iria lembrar para sempre era a quantidade de vezes que um ser humano consegue repetir a palavra “exatamente”. Sem contar todas as suas variáveis: “Exatamente isso, pessoal”, “Exatamente isso que acontece, pessoal”, “Exatamente essas situações que acontecem, pessoal.” Exatamente esse desespero.
Algumas pessoas faziam piadas das próprias infrações, trocavam endereços de oficinas, pegavam no pé dos políticos. Dois médicos conversavam sobre cuias de chimarrão cravadas no céu da boca dos motoristas mateadores. Ou sua noção de entretenimento estava muito equivocada ou os colegas de aula estavam mesmo se divertindo.
Enquanto o professor falava da necessidade de enxergar os pneus do carro da frente, Alice botou seu cérebro em ponto morto e passou a analisar a calota sem cabelo de um homem. Um, não. Dois, três, quatro, cinco. A calvície masculina aumentava como os buracos nas ruas. Haja asfalto e implante para remendar tudo.
Depois Alice não pensou em mais nada. Precisava concentrar esforços para vencer o sono e não roncar na frente de estranhos. O rangido do ventilador de teto parecia música de ninar. O princípio da direção defensiva era ser mais tolerante (mais?) e antecipar os atos dos outros motoristas. Ah se eles fossem tão previsíveis quanto os exatamentes do professor. Os olhos de Alice agora fechavam em sincronia com os rangidos. Exatamente assim, pessoal.
Pausa para o intervalo com cafezinho morno e bolachas moles. As distrações disponíveis eram 1) esticar as pernas, 2) ficar em pé e se apoiar nas divisórias para ver se alguma caía, 3) encarar a fila do banheiro, 4) interagir com o pessoal, 5) desistir das aulas e dirigir sem carteira.
Alice preferia estar no maior engarrafamento do mundo. Ou bem estacionada no sofá de casa.