31 de ago. de 2008

A pedido

Essa é a história de um iogurte que está com os dias contados. Ele vai acabar na lata do lixo, intacto. Junto com os restos mortais do almoço. Justo no dia que não passa lixeiro. Esse iogurte sabor morango não pediu para ser retirado da gôndola do supermercado onde estava, geladinho e faceiro, observando o movimento.
Alguém chegou sem pedir licença, pegou a embalagem, virou daqui, sacudiu dali, colocou no carrinho. Depois o soterrou com sacos de feijão e bolachas recheadas. Alguém sem coração, diga-se de passagem. O iogurte passou momentos de terror ameaçado pela coroa de um abacaxi, que quase perfurou sua embalagem. E ainda ouviu o comentário de uma criança: "morango de novo, mãe?" Isso acaba com a auto-estima de qualquer um.
Como se não bastasse, o pobre do iogurte foi manuseado por um empacotador amador (provavelmente uma pessoa da família) e designado para a perigosa sacola onde estavam os ovos.
Sacudiu num porta-malas claustrofóbico e superlotado, ficou esperando enquanto eles desceram pra dar uma voltinha no shopping, depois foi confinado a uma geladeira sem degelo automático. Você acha frescura? Então fique você lá dentro, recebendo sucessivos pingos do congelador que agoniza de gelo em cima da sua cabeça.
E isso é a ponta do iceberg. Pior do que ser ignorado por 29 dias na geladeira é ter como companheiros de cela um brócolis e uma couve-flor. Como fedem. Não adianta colocar os dois em saco plástico que o cheiro sai e fica impregnado até no código de barras alheio.
Por uma ironia do destino, essa gente que levou o azarado do iogurte para casa ficou horas conferindo o prazo de validade. Que esnobes. Tiraram várias embalagens, bagunçaram a prateleira, escolheram a melhor data de todas. A propósito: quem disse que as embalagens do fundo são sempre mais novas que as da frente? Puro preconceito. Se elas chegaram depois, que esperem a sua vez de serem compradas.
Voltando ao iogurte, falta um dia e meio para a data vencer. Trinta e seis horas, para ser mais exato. Justo ele, que passou por tantas provações. Sobreviveu a bactérias e microbacilos vivos. Foi separado da sua gordura para ganhar a palavra Light no rótulo. Foi testado por rígidos controles de qualidade. Aguentou a marca concorrente fazer degustação bem na sua frente. E agora vai apodrecer por livre e espontânea vontade - dos outros.
Ô família desumana. A empregada, como num complô, colocou a jarra do suco tapando a visão de quem abre a geladeira. E você sabe, quem não é visto não é lembrado.
Ninguém vai salvar o iogurte a tempo. Não com a sobra do pudim de leite condensado lá embaixo. Quem vai preferir um alimento saudável com pudim de leite condensado por perto? E ainda são seis iogurtes na bandeja. Sem querer ser pessimista, é humanamente impossível comer a tempo os seis iogurtes sabor morango. Não nessa casa.
Por que não fazem um mutirão e liquidam com o assunto? Por que compram sabor morango se já enjoaram? Que levem iogurte maracujá com carambola e deixem os outros em paz. E se compram, por que deixam tudo para a última hora?
Enquanto a vida corre lá fora e o queijo tem muita saída, o iogurte faz risquinhos imaginários na parede da geladeira. E reza a Deus por um fim digno. Melhor ir para o lixo de uma vez. E lá dentro tentar o suicídio com a coroa do abacaxi - que mal chegou do supermercado, foi descascado e devorado inclusive pelas crianças da casa que ainda tiveram o desparate de comentar "hummm, delícia, tá amarguinho!"
O texto termina mas fica aqui um apelo: se você compra iogurtes ou conhece alguém que compre, preste atenção na data da validade. Pode não parecer, mas os iogurtes têm noção de tempo.

29 de ago. de 2008

Foi no banheiro

Denise esperava impaciente, batendo as unhas e os anéis na toalha da mesa. Por mais que se atrasasse, ela era sempre a primeira a chegar. Vinte minutos depois Juliana e Vera sentaram na sua frente. Acharam melhor pedir logo uma garrafa de champanhe, antes que Renata chegasse. O tradicional encontro das sextas-feiras não acontecia há quatro semanas. O tempo que Renata pediu de reclusão.
Falando nela, a turbinada chegou. Duzentos e cinquenta mililitros em cada lado, os bicos se exibindo na camiseta justa. E branca! Onde estava a Renata, que só usava roupas largas para esconder o que não tinha?
-Bom, né? Isso que ainda tá inchado...
As quatro nem precisaram falar. Correram direto para o banheiro do restaurante ver de perto os seios novos da Renata, que tirou a camiseta na hora. Volume ideal. Alinhamento perfeito. Cicatrizes discretas. Hematomas suaves. Sem dúvida, um excelente trabalho. Dava vontade de comprar dois iguais. E a textura, como seria? Renata leu o pensamento das amigas.
-Podem apertar. É macio!
As quatro já tinham passado por tanta coisa juntas. Relacionamentos desfeitos. Viagens. falta de dinheiro. Crise dos vinte. Crise dos trinta. Tratamentos cruéis para celulite. O primeiro fio de cabelo branco. Mas apalpar o seio da outra era um pouco demais.
-Vai lá, Verinha. Eu preciso de uma opinião...
Vera nunca se sentiu tão constrangida. Era uma oferta tentadora, ela sempre teve curiosidade de saber se os seios siliconados eram tão duros quanto pareciam.
-Denise, deixa de bobagem. Pode tocar.
Denise explicou que não era nada pessoal, ela apenas não se sentia à vontade para apalpar uma amiga. Pressentindo que era a próxima, Julia fingiu que precisava fazer xixi e se refugiou atrás da portinha.
Nesse momento, entrou uma quinta mulher no banheiro. O que a intimidade complicou, o total desconhecimento facilitou.
-Uma turbinada! Posso tocar para ver como é?
Renata mal consentiu e duas mãos grudaram nos seus peitos.
-São macios! E gostosos de pegar!
A mulher saiu sem dar explicação. Voltou logo depois com um homem.
-Ahhhhhhhhh!
-Tarado!!!!!
-Deixa disso! É o meu marido. Eu quero botar silicone e ele acha que não vai gostar...
Agora foi a Renata que ficou constrangida.
-Não esquenta, querida! Eu não sou ciumenta!
Julia, Vera e Denise queriam ter uma câmera para registrar a ocasião. O marido da mulher que elas nem sabiam o nome pegou nos seios da Renata, que só teve tempo de fechar os olhos e pensar no bem que estava fazendo para a felicidade sexual de um casal. Na mesma hora, ele aprovou.
Os dois saíram abraçadinhos, levando o cartão do cirurgião plástico que operou Renata. Ela só fez um único comentário.
-Que mãos geladas!

Revista Claudia, junho 2007


Eu e o escritor Antônio Prata fomos convidados a escrever para o especial de Namorados, mostrando a visão de um homem e de uma mulher sobre o mesmo tema: uma noite inesquecível. O pessoal da revista se surpreendeu porque o texto dele foi todo romântico e o meu, mais fuerte.

Salto alto

Bem que ela leu em algum lugar que o ponto G da mulher é o cérebro. Foi só ouvir aquela frase para o sexo automático de uma noite de terça ser promovido à pura sacanagem:
-Não tira o sapato...
Como ela não tinha pensado nisso? Um fetiche assim, sem mais nem menos! A lingerie mais cara do mundo não conseguiria ser tão provocante no momento. Então o escarpim que ela usou um milhão de vezes, já levemente desgastado na ponta e com a borrachinha do salto precisando de conserto, ainda mantinha seu sex appeal. Quinze centímetros de prazer. Bico fino e sensual. Couro preto e devasso – ih, será que era couro mesmo? Impossível não lembrar que o velho escarpim de guerra foi seu parceiro fiel em tantas reuniões chatas, nas rapidinhas até o supermercado, no enterro da tia Inês semana passada.
-Sério?
-Sério.
Hummm. O poder de um salto alto no imaginário masculino! Quanto mais o escarpim cobria seus pés, mais ela se sentia nua. Os dois ainda nem haviam iniciado os trabalhos e o seu cérebro já se contorcia todinho. Impressionante como uma terça-feira que começou com “tira os cotovelos da mesa” e “eu falei para tirar os pés daí” poderia terminar com um sexo tão gostoso. Cadê as crianças? E a louça para botar na máquina? Sei lá, essas preocupações só fazem sentido em um ambiente familiar, não no motel de beira de estrada que o apartamento se transformou.
-Não tiro o sapato se você nunca mais tirar as mãos de mim...
Hummm. O poder de uma boa pegada. Olha só como a rotina e as contas vencidas atrapalham um relacionamento. Mãos para cá, bocas para lá. E ela pensando que nenhuma caixa de leite faltando na despensa tem o direito de afastar duas pessoas que se amam.
Hummm. Onde eles estavam mesmo? Transando como nos velhos tempos. E não é que ele continuava tarado? Ou sempre foi e o vazamento da pia, inacreditavelmente, desfocou sua atenção. Naquela noite, tudo era cama redonda: o braço retangular do sofá, o banquinho quadrado da cozinha, o teto da sala que refletia sombras comco se fosse um espelho. Quando eles finalmente chegaram no quarto, o safado do escarpim pisoteou as fronhas limpas, chutou os travesseiros, rasgou o lençol e – sabe-se lá como – acertou a dicróica da mesinha de cabeceira.
Eles nem perceberam que o filho levantou, foi no banheiro fazer xixi e voltou sonâmbulo para cama. Nem ouviram que os vizinhos de baixo ouviram tudo. Dormiram já com a luz do sol espiando pelo buraco da fechadura. Amontoados num só lado da cama, como se a king Size fosse um colchãozinho de solteiro.
Que delícia acordar no outro dia e cada um juntar os braços e pernas que eram seus. O melhor de tudo foi na hora do banho, quando ela lembrou que as liquidações de sapatos estavam começando.




28 de ago. de 2008

A oração que virou anúncio

Esse texto circulou bastante pela internet, virou um lamentável power point edificante e foi lido pela Ana Maria Braga, pra toda a audiência da Globo, como texto de autor desconhecido. Depois virou anúncio pro Dia da Mulher, finalmente com a minha autorização. Foi escrito numa madrugada, num clima vou rezar comigo mesma que o dia foi difícil. E tá aqui porque gosto até hoje.

Senhor, me ajude a nunca desistir de ser mulher.
Coloque um espelho no meio do meu caminho entre a lavanderia, o supermercado, o sapateiro, o colégio e a locadora. E que, ao me olhar, eu goste do que veja.
Não deixe que eu passe uma semana sem usar um batom bem vermelho, uma bota bem alta ou um jeans bem justo.
Proteja meus cachos do vento e os brincos e anéis dos olhares invejosos.
Nunca deixe faltar na minha vida comédias românticas e boas depiladoras.
Deixe que eu fecho os registros e as janelas. Mas, por favor, abra algumas portas. Nem que seja a do carro.
Se eu estiver com vontade de chorar, faça com que eu chore um dilúvio. E que tenha saído de casa sem pintar o olho.
Para cada dia de TPM, me dê uma vitrine com sapatos lindos.
Já que eu nunca pedi milagres, faça com que minhas celulites sejam ao menos discretinhas.
Me dê saúde, tempo livre, silêncio. E que nunca falte O.B. na minha bolsa.
Nos engarrafamentos, faça com que eu ligue o rádio e esteja tocando minha música preferida. E que eu lembre da letra para cantar.
Dê forças para eu insistir que meus filhos comam salada, digam por favor e obrigada, limpem a boca no guardanapo, façam as pazes e puxem a descarga.
Cegue meus olhos para as sujeiras nos cantos e os brinquedos no meio da sala – eles vão estar sempre lá, isso eu já vi.
Ajude para que eu chegue do trabalho e ainda consiga brincar, ver desenho, contar história, fazer cosquinha, pintar dentro da linha preta. Ou fazer só uma dessas coisas. E se eu não tiver a menor condição de me manter em pé, faça com que meu filho chegue dormindo da escola.
Em dias difíceis, dê coragem e persistência para eu seguir na dieta.
Faça com que eu não esqueça de ligar para os meus pais e meus amigos.
Dê firmeza para os seios e para a hora do castigo.
Ajude para que o meu trabalho não seja bom somente no dia do pagamento.
Proteja minhas poucas horas de sono e não me julgue mal caso eu não acorde no meio da noite para cobrir meus filhos.
Não deixe que a minha testa fique tão franzida a ponto de parecer uma saia plissada. E eu, uma louca estressada.
Faça com que o sol seja meu personal trainer, meu complexo de vitaminas, meu carregador de bateria – mas quando eu pedir um diazinho de chuva, não pergunte por quê.
Para cada batata quente no trabalho, me dê um café recém-passado.
Entenda quando eu rezo para cancelarem uma reunião – não é gastar reza à toa, pode ter certeza.
No meio de tudo isso, faça com que eu ache tempo para virar namorada de novo, ir no cinema, jantar fora, beijar na boca, dormir abraçadinha.
Ilumine o espelho do banheiro e proteja minhas pinças, meus cremes e segredos.
Ajude a não faltar gasolina, não furar o pneu, não arranhar a calota. Afaste os motoqueiros do meu retrovisor.
Proteja meu sorriso, meu humor, meu intestino.
Senhor, por pior que seja o meu dia, faça com que ele termine, e não eu.

Figuração... Ação! parte 2

Por que eu sempre caio nas pegadinhas da agência de modelos? Quando cheguei no set e procurei o assistente de direção para saber como compor meu personagem dentro de um espectro fashion, ele nem deixou eu terminar a frase.
-Faz uma trança e espera.
-Eu mesma? Não tem cabeleireira?
-Faz de qualquer jeito e senta aqui.
Ingenuamente, organizei as informações: 1) figuração num comercial de moda 2) trança free style 3) acting despojado. E assim deduzi que, nesse comercial, a figuração ajudaria a mostrar a tendência da customização, onde personalizar as roupas reflete até no couro cabeludo.
-E o make?
-Se quiser, passa batom. Só não vai ficar com o dente sujo.
E assim eu fiquei sentada num lugar que lembrava sala de aula, o chão com papéis amassados, brigando com os fiapos que insistiam em sair da trança. Não tinha espelhinho de bolsa mas esfreguei a língua ao máximo nos caninos. Fiquei com uma aparência jovem demais, tudo parecia tão pobre ao meu redor. Eu, inclusive.
Só quando o pessoal da produção trouxe um quadro-negro lascado na ponta e a atriz principal surgiu vestida de professorinha de rede estadual, as coisas começaram a fazer sentido. Estojos e cadernos foram jogados aqui e ali. E os atores que interpretavam os alunos traziam bananas em vez de maçãs.
Não teve pré-light. Não teve pó facial para tirar o brilho. Nem cafezinho sem açúcar. Eu fazia parte de um comercial de governo de baixíssimo orçamento incentivando a educação sexual no currículo escolar.
Enfiaram uma banana caturra na minha mão e houve farta distribuição de camisinhas. Não acreditei quando o fundão da figuração começou a encher as camisinhas como se fossem balões e o diretor gostou da idéia. Não tinha nada melhor no roteiro?
Ao ouvir “Figuração... Ação!”, nunca me senti tão constrangida. Meu rosto e meus braços iam aparecer em cena ensacando a caturra, seguindo o didático exemplo da professora. Cheguei em casa e tomei um longo banho. Apesar da fome, não jantei. Eu precisava esquecer meus colegas de cena devorando as bananas com camisinha e tudo após 12 horas de filmagem a seco. Depois dizem que vida de figuração é fácil.

(continua)

27 de ago. de 2008

A Engolidora de Sapos

-Reeeeespeitável público! E agora, a grande estrela do nosso circo de
horrores! Vinda diretamente da vida real, eu apresento.... a Engolidora
de Sapos! Essa mulher consegue a façanha de engolir um sapo de uma
só vez! Se existem pessoas com estômago fraco na platéia, fechem seus olhos
porque a cena é reeeeeeeepugnante!!!
As luzes mostram uma mulher que entra no picadeiro. Ao contrário do
esperado, ela não veste roupas bizarras, não é corcunda, não possui barba ou
qualquer outra disformidade. Ao vê-la, algumas pessoas viram o rosto. Mães tapam
o rosto das crianças, que espiam assustadas pelos buracos entre os dedos.
Um anão vem logo atrás, trazendo uma jaula cheia de chefes irritados, vizinhos reclamões, desconhecidos estressados, colegas de trabalho mentirosos, amigos da onça e outras feras.
Do outro lado do picadeiro, a mulher mantém a calma. Abre e fecha a boca várias vezes, alongando a mandíbula. Massageia o pescoço, preparando-se para engolir os sapos.
O primeiro a sair da jaula é o chefe irritado. Ele se aproxima da mulher e grita. Ou melhor, só mexe os lábios. Seu microfone não está ligado e ele precisa gritar de novo.
-Sua incompetente! Esse trabalho está medíocre! Vai virar a noite refazendo!
A mulher engole os três sapos um atrás do outro e limpa a boca com o dorso da mão. A platéia acompanha tudo horrorizada.
Depois vem o vizinho reclamão, que já chega soltando as patas.
-Vou virar o meu lixo na porta da tua casa! Vou roubar o teu jornal!
A mulher engole fácil. Pede um palito de dentes para o anão. Perto dos outros sapos, esses são girinos.
Luzes focam um casal de velhinhos que acha a cena desconfortável demais e se retira. Eles não são obrigados a ver uma mulher educada dessas levando desaforo para casa.
O clima fica tenso. Um silêncio constrangedor ecoa no ar. O dono do circo faz sinal para que o anão liberte mais um da jaula. Vem o desconhecido e, pelo jeito que ele toca uma buzina imaginária, é um estressado do trânsito.
-Vai aprender a dirigir! Sua destruidora de calotas!
Ela abre a boca e engole os sapos de uma só vez. O último fica entalado na garganta. Um homem grita lá do fundo da platéia, puxando um coro de vozes.
-Cretino! Cretino! Cretino!
Nisso, tocam os tambores, anunciando o ponto alto do espetáculo. Os elefantes, próxima atração, estão mais agitados que o normal. O anão solta o colega de trabalho.
-Vou te sacanear! Vou te fazer de idiota na frente de todo mundo!
Ninguém sabe se é por causa do sapo anterior que ainda está entalado ou se é uma reação de defesa do próprio organismo. A mulher começa a tremer e tem um acesso de chega. Fala fala fala fala até não poder mais parece uma metralhadora esquece de falar as vírgulas e os pontos diz tudo que quer e coisas que nem imagina que estão guardadas. Com esse desabafo, a mulher cresce de tamanho até encostar a cabeça na lona, que rasga. A platéia não pisca.
Quando a ex-engolidora de sapos termina, vem o silêncio. Dali para a frente, gostem ou não, o show acabou. Alguém levanta e bate palmas. Uma senhora também levanta e assobia. Toda a platéia faz o mesmo. As palmas enchem o circo.
A mulher espera as palmas cessarem e agradece, curvando o corpo enorme o máximo que consegue. Mas ainda falta um sapo no seu caminho. O dono do circo percebe que é com ele a coisa. As luzes o focam dessa vez. Amedrontado, ele manda chamar os seguranças.
Não é preciso. Os elefantes, que são muito educados e não suportam ver mulher sofrer, entram no picadeiro e pisoteiam o dono do circo. Ele morre na hora. A platéia explode em palmas. Agora sim o show acabou.




Figuração... Ação! parte 1

A primeira parte que apareceu num comercial de TV foi meu cotovelo esquerdo. Naquele tempo eu estava fazendo bico como dublê de pé num comercial de sapato porque minha prima, que sempre teve o dedão mais lindo do mundo, tropeçou numa pedra e amanheceu com a unha roxa. Por sorte e por um pouco de genética, eu a susbtituí.
Meu papel era ficar sentada próxima ao ator principal e esperar que a câmera passasse perto dos meus pés. O diretor resolveu abrir mais o plano porque cismou que o braço do sofá era poético. Então meu cotovelo foi enquadrado junto. O pessoal da agência entrou na viagem do diretor e eu quase enfartei quando reconheci meu cotovelo em cena. Era ele, e como agregou poesia ao tecido floral do sofá. Até hoje não consegui cópia, preciso ligar para a produtora.
Depois do comercial de sapato, foi um pulo para eu começar a fazer figuração. Acho que nasci para isso. Nunca quis ser uma Juliana Paes. Elas erram muito o texto e passam horas na maquiagem para vender o quê? Cerveja, carro, liquidação. Os figurantes fazem parte de um contexto, ajudam a dar o clima, compõem a cena, dão veracidade. Ou você se empolgaria com um bar vazio e teria vontade de ir num shopping entregue às moscas?
Adoro quando estou no set de filmagem e o diretor grita bem alto “Câmera... figuração... ação!”
É a prova de que existimos e, sem nossa presença, o ator principal perde o fio condutor. E como eles se perdem. Especialmente os modelos que são forçados a dar texto. Peça para uma estátua se emocionar – é mais ou menos isso. Não vai baixar o Robert de Niro. Arroubos de interpretação não são como soluços, que surgem do nada. Tenho observado que, se sobra corpo, falta humildade para essa geração de atores-modelos. Depois de fazer três ou quatro comerciais, eles acham que estão graduados em Drama com MBA em Shakespeare. Me poupem. Juntando todas as suas falas, não forma um parágrafo.
Eu sou um exemplo nos sets, pode perguntar pra qualquer um da equipe. Mesmo a comida sendo liberada, tenho consciência de que provavelmente só trouxeram um número de calça para a figuração. Então priorizo o zíper ao canelone. A gente volta pra casa maquiada, mas não pense que tudo é glamour. Tem que ter estrutura emocional para fazer figuração. É preciso se colocar no lugar do diretor – apesar do cachê dele ser 20 vezes maior que o meu. E entender que, se ele grita “Tira o figurante!” e cinco minutos depois berra “Bota o figurante!”, é porque cinema é uma coisa orgânica.
Acho que minha filha puxou a mim. Ela adora passar correndo lá atrás quando alguém está tirando uma foto. No vídeo de casamento da minha prima (a dublê de pé), sem querer Doroty fez uma ponta na valsa dos noivos: seu corpinho dormindo, jogado no meio da pista, deu um contraste interessante à cena.
Esqueci de dizer que me chamo Maria, um nome que também nasceu para fazer figuração em Marias Fernandas, Marias Carolinas, Marias Cristinas.
Vou parar por aqui porque a ansiedade é grande. Me chamaram para trabalhar num comercial de moda. Veja como levo a sério minha profissão, vou agora na banca comprar a Elle. Não posso destoar e chegar no set vestindo a tendência errada. E não tenho a menor idéia do que vestir.

(Continua. Não sei quando.)

26 de ago. de 2008

Atrás do caminhão de lixo

Relaxe, não há nada a fazer. Você está atrás do caminhão de lixo. Tire o pé do freio e a mão da buzina. Por alguns minutos que parecerão horas, as suas urgências vão dar passagem a restos mortais de iogurtes, escovas de dentes renegadas, caixas vazias de leites, cascas de frutas e ossos de galinha. Ligue o som e preste uma homenagem dedicando a eles sua música preferida.
Se você tem o luxo de estar em um carro com ar condicionado, feche os vidros e assista de camarote ao balé do lixo: os homens correm de um lado a outro, pulam para subir na carroceria, fazem saltar veias da perna e sacolas de supermercado, erguem nos braços sacos de 100 litros. Poucas academias oferecem aulas tão completas de aeróbica. E ainda sobra fôlego para a turma conversar sobre futebol e mulheres.
Atrás de um caminhão de lixo, palavras como pressa e ansiedade vão parecer inúteis como uma garrafa de refrigerante sem tampa. O tempo vai perder a noção e você, provavelmente algum compromisso.
Aproveite o momento para ligar para uma amiga, marcar depilação, pagar conta, encomendar uma torta ou experimentar aquela técnica de meditação que você leu numa revista. Se ficar só reclamando, depois não diga que não tem tempo para nada: lembre-se de que você estava com a faca e o queijo na mão.
Observe a latinha teimosa que cai na rua e depois é arremessada num lance perfeito para dentro do triturador. Ela ainda poderia estar confortavelmente na prateleira do supermercado ou ter virado um porta-lápis revestido de papel crepom. Mas não. Seu destino foi matar a sede de alguém e ter seu corpo doado para a reciclagem.
Agora diga se os seus problemas não parecem pequenos perto das toneladas de lixo se amontoando dentro do caminhão. Dispersa em analogias baratas, você quase atropela um herói que ficou para trás – se não fosse ele a voltar para buscar um saco escondido sob o canteiro de azaléias, logo alguma dona de casa teria que fazer o trabalho sujo e juntar o lixo espalhado pelos cachorros.
Só se passaram três minutos e você já fez mentalmente a lista do supermercado, pensou no que vai pedir de amigo-secreto no Natal e teve a agradável surpresa de ver que sua memória ainda lembra de toda a letra daquela música dos anos 80.
Atrás do caminhão de lixo, tudo vira pretexto para deixar o pensamento correr solto e voltar ao passado - quando você não tinha filhos para buscar no colégio, não existia telemarketing e a geladeira da sua casa enchia de comida como num passe de mágica.
É, minha amiga, agradeça ao caminhão de lixo que surgiu na sua frente. Um presente de fim de tarde. Graças a ele, você escapou de chegar mais cedo em casa e pegar elevador com o chato do 901. E só porque você foi obrigada a dirigir devagar quase parando, o prego pontudo que está entre dois paralelepípedos só esperando uma vítima nem fez cosquinha no pneu do seu carro.
Mais uma quadra e o caminhão do lixo finalmente vai dar passagem. Que pena. Agradeça porque nesses cinco minutos que pareceram cinco horas, você soltou a cabeça no encosto do banco, batucou os dedos na direção, seus ombros ralaxaram e alguém que vinha atrás viu você dançar dentro do carro e teve vontade de fazer o mesmo.
Um caminhão de lixo. Só com o passar do tempo a gente aprende a aproveitar algumas coisas da vida.

Plantão

A tarde de domingo está perfeita para Alceu. Vento frio, céu pesado, chuva em questão de minutos. Nenhuma alma nas ruas. E ele no plantão de vendas. É a quarta vez no mês que Alceu é escalado para o domingo. Antes, ódio e revolta. Hoje, as mãos para o céu.
Ele desce do carro, dá um beijo na mulher e se despede com cara de cachorro abandonado. Ela que volte logo para a casa, as crianças estão sozinhas e vem chuva. Ele vai ficar bem. Trouxe os classificados para ler. Seis horas passam rápido.
Abre a porta do plantão de vendas e confere o relógio. Faltam quarenta minutos para o jogo começar. Hoje tem a final do brasileirão e Alceu vai assistir cada lance na santa paz. Refugiado atrás de tapumes. Sem crianças pulando ao seu redor. Sem mulher perguntando o que é zagueiro.
Na pasta de trabalho, escondido entre os folders da obra, está o saco de pipocas que ele vai estourar no microondas do apartamento decorado. Por baixo do terno e gravata, a camisa do timão para dar sorte.
Começa a chover. Praticamente um dilúvio. Alceu abre os classificados, dá uma olhada nas ofertas de carros. Confere a cotação do seu Gol 99 quatro portas. Espia os preços das impressoras. Passa reto pelos apartamentos para vender e alugar. Tudo que ele não quer ver nesse momento é sacada com churrasqueira.
Toca o seu alarme interno, avisando que faltam cinco minutos. Alceu levanta, coloca uma placa de "volto logo" do lado de fora do plantão e se muda para o apartamento decorado. Usa o banheiro, depois o microondas, pega um refrigerante para clientes no frigobar e liga a TV. O jogo começa. A falsa sala se enche de vida.
Aos oito minutos do primeiro tempo, Alceu ouve um trovão. Antes fosse. Tem alguém tocando a campainha. É como se um raio caísse na sua cabeça. Duas velhinhas ensopadas de água estão paradas na calçada. Alceu não faz um barulho sequer. Elas não sabem ler? Volto logo. Isso acontece nos melhores plantões.
Alceu aperta a sua tecla mute e se concentra no jogo. Silêncio absoluto. Não satisfeitas em grudar seus dedos na campainha, as velhinhas batem no vidro com o cabo do guarda-chuva. Assim não dá. O coitado liga o radinho de pilhas que trouxe para uma emergência e enfia os fones de ouvido. Elas que morram de pneumonia. Ou voltem outra hora.
O jogo fica tenso. As panturrilhas dos jogadores inflam. Alceu enrijece o pescoço, levanta, se benze, rói as unhas, fecha os olhos. A bola corre endiabrada pelo campo, leva um chute aqui, uma cabeceada ali e, muito a contragosto, gruda na rede.
-Gooooooooooooooooooool!!!!!!
Alceu vibra, pula, chora, atira pipocas para cima, tira os fones de ouvido.
-Mooooooooooooooooooço!!!!!!
As velhinhas gritam em coro, ainda lá. É o fim do sossego e de Alceu. Ele se traiu. Se abrir a porta agora, as clientes vão ver que ele estava lá o tempo todo. E depois daquele grito de gol, não tem como não abrir.
Num rompante de loucura, Alceu abre a porta e diz para elas fugirem enquanto é tempo. O prédio vai cair, há rachaduras enormes por toda a obra e ele está ajudando o corretor a segurar uma parede enquanto não chegam reforços. Bota as velhinhas assustadas num taxi, abana rápido. Volta para o plantão e ainda pega a metade do segundo tempo.

25 de ago. de 2008

Pura ilusão

-Onde isso vai parar? Onde?
Era o que todos se perguntavam, entre goles de café morno no saguão do hotel. Mais um ano de apresentações em festinhas infantis, circos miseráveis e convenções de firma havia chegado ao fim. Depois de serrar corpos ao meio e fazer aparecer lenços multicoloridos, lá estavam os mágicos e ilusionistas novamente reunidos no seu próprio encontro para repensar a profissão. E tentar encontrar a resposta que tanto os desafiava:
-Para onde vão as canetas que somem?
Eles já não tinham ilusão de aprender muitas coisas. Talvez tirar da cartola dois coelhos em vez de um só ou então uma capivara de tamanho médio - havia limitações técnicas, será que os fabricantes de cartola não percebiam esse filão inexplorado?
João Carlos, mais conhecido como El Magnifico, quebrou o protocolo e subiu ao palco. O Grande Torto e suas novas técnicas de entortar colheres que o perdoassem, mas ele precisava falar. Ajeitou o microfone e tirou um papelzinho de dentro da manga para ler.
-Meus amigos, se não for pela nossa profissão, que seja pelo nosso bolso. Estou cansado de perder canetas e ter que comprar outras. Ontem foram quatro! Eu tenho uma teoria. Acredito que exista uma grande força inexplicável - um potente ímã gravitacional esferográfico - que atraia as canetas para lugares obscuros, talvez buracos negros ou fendas geológicas. Não há canto atrás de armário que dê conta de tanta caneta sumida e...
Ele não conseguiu terminar o raciocínio. A platéia veio abaixo.
-Finalmente alguém fala abertamente sobre isso!
-Eu me sinto um burro...
-Ilusionista não é Einstein!
-Algumas questões fogem do nosso controle.
-Conheço uma menininha que faz sumir oito bics de uma só vez...
-Impressionante!
El Magnifico precisou levitar para retomar a palavra.
-Caros colegas, de que adianta conseguir se soltar de cadeados e correntes dentro de um tanque de água congelada se nós não conseguimos fazer reaparecer uma caneta? Estamos fragilizados!
Silêncio e tensão na platéia. El Magnifico não tinha papas na língua, ia tocar no cerne do problema.
-Meus amigos, vocês já pensaram em quantas canetas somem no mundo todo, a cada minuto? Multipliquem pelos segundos! Se qualquer pessoa sem atuação no ramo consegue dar sumiço em canetas, imaginem no dia em que alguém conseguir fazer uma delas reaparecer. Será o nosso fim!
El Magnifico ganhou uma salva de palmas. Mas ainda não tinha terminado.
-Alguns acreditam que é um fato isolado com os modelos de tinta azul. Então compram canetas que escrevem em roxo, verde e dourado, perdem dinheiro e tempo colando seus nomes com durex. Mais dia, menos dia, elas também vão sumir e a economia mundial entrará numa crise irreversível! Não sobrará um dos nossos para ensinar o truque.
Mago Antunes, o mais antigo em atividade profissional, pediu a palavra. Se existia algo que El Magnifico temia, além de ser mordido por uma pomba na frente de crianças debochadas, era ter que responder perguntas em público.
-Ô Magnifico, só faltou um detalhe na sua brilhante oratória: por que as tampas não somem na mesma proporção que as canetas? Hein? Hein?
-Boa pergunta. Antes, vamos ouvir o ilusionista lá do fundo, de mão levantada...
-Obrigado. Com a devida permissão, penso que as canetas são seres nômades e não fixam residência. Elas querem ficar livres e exercer o direito de ir e vir.
O burburinho aumentou. El Magnifico ia falar e não conseguiu. Ele podia jurar que tinham colocado um esparadrapo invisível na sua boca. Mago Antunes subiu ao palco e pegou o microfone:
-Eu tenho outra teoria, aliás, infinitamente melhor que a sua. As tampas não somem porque as canetas também não somem. Elas mimetizam. Adquirem a cor do carpete, do tabuão, do rodapé, da estante de madeira, da toalha de mesa e da pele humana. Somem das mãos mas estão ali, debaixo do nosso nariz. Já o mesmo não ocorre com as tampas, dotadas de uma pigmentação superior. Por isso vemos mais tampas perdidas pelo chão.
Até que provassem a veracidade da teoria, já era um alívio. Conforme o estatuto do sindicato, mágicos e ilusionistas não tinham obrigação de saber sobre mimetismo, camuflagem ou aposematismo.
A organização do evento solicitou que os dois sumissem dali antes que o Grande Torto acabasse com o faqueiro de todos os hotéis da redondeza. Quem quisesse continuar esse debate que entrasse no chat de Mago Antunes.
Todos queriam. O assunto era instigante, pertinente e substancial. O problema? Encontrar uma caneta para anotar o site. Como sempre, todas haviam sumido.

Meu segundo livro

Uma novela publicada em 2002. Mais uma sessão de autógrafos inesquecível na Feira do Livro de Porto Alegre. Como a personagem principal era uma manicure, o lançamento foi temático, num salão de beleza. E como os micos fazem parte da divulgação, eu dei entrevista fazendo as unhas ao vivo.

Meu primeiro livro

Uma coletânea de crônicas. Uma raridade de encontrar. Com esse livro eu fiz um monte de palestras e fui finalista no Prêmio Açorianos de Literatura de 2001, em Porto Alegre. Perdi para o Moacyr Scliar - acho que ele merecia ganhar.

24 de ago. de 2008

Manifesto a favor das tampas

O sindicato dos fabricantes de requeijão, geléia e nata vem a público manifestar seu apoio às tampas de pão de sanduíche. Sem nenhuma razão aparente, as extremidades do tradicional pão de forma fatiado estão sofrendo preconceito dentro dos lares brasileiros.
Apesar de ser tudo farinha do mesmo saco, as duas tampas são vistas como um pão inferior se comparadas às fatias. Testes de laboratório já comprovaram as mesmas fibras e o mesmo percentual de glúten. Mas de nada adianta. A culpa é da assimetria, alegam os consumidores. Falta de estética, outros justificam. Consequentemente, as tampas são deixadas de lado e não raro desprezadas por toda a família. Esse péssimo hábito alimentar vai contra um passado glorioso onde as pontas do pão de meio quilo - também conhecidas como “bico” - eram disputadas a tapa por crianças e adultos.
É preciso considerar que o descaso às tampas de pão de sanduíche não se encerra na mesa da cozinha: afeta toda a indústria do café da manhã. Se elas fossem consumidas conforme o previsto, uma quantidade maior de requeijão, geléia e nata seria produzida, alavancando o desenvolvimento do setor. Mais cedo ou mais tarde, essa crise certamente vai afetar a versão light dos acompanhamentos para pão e diminuir a contratação de empregados nas fábricas.
Prevendo uma queda considerável de uso, o sindicato das facas também se mobilizou e enviou o seu apoio. Fabricantes de torradeiras publicaram nota de protesto nos principais jornais do país e se preparam para uma crise a médio prazo. O setor de matrizarias que abastece as fábricas de pão de sanduíche já está estudando uma nova maneira de acondicionar a massa e levá-la ao fogo. Num mundo onde o avanço tecnológico produz melancias quadradas e sem sementes, fazer um pão sem tampas não deve ser impossível.
O preconceito contra as tampas de pão de sanduíche é um saco sem fim. O fato pode até afetar a diplomacia com países vizinhos, bloqueando a importação de doce de leite uruguaio. Uma saída, dizem os especialistas, seria direcionar todas as tampas para a produção de croutons e farinha de rosca. Ou então reposicionar o produto para alimentar animais de estimação.
Chez Pierre, um renomado chef-de-cuisine da cidade, acredita que pode ajudar. Quer servir tampas de pão de sanduíche como couvert no seu sofisticado restaurante e dar prestígio às coitadas. O setor hoteleiro, que desperdiça milhões com as milhares de tampas recusadas por seus hóspedes, já se engajou no manifesto.
Solidários, os produtores de queijo e presunto se uniram aos fabricantes de manteiga e queijo de minas para buscar soluções. Se a mortadela venceu o preconceito dos consumidores e hoje possui até versão com ervas finas, deve haver alguma saída para resgatar a dignidade das tampas de pão de sanduíche. Conhecidos publicitários ofereceram seus serviços para lançar uma campanha onde um novo modelo de família de comercial de margarina disputa as duas tampas, limpa a ramela dos olhos, não dá bom dia e fecha a cara atrás do jornal.
Mas para o sindicato dos fabricantes de requeijão, geléia e nata, de nada adiantará toda essa mobilização se cada um dos brasileiros não repensar suas escolhas e receber de braços abertos nas suas casas as tampas de pão de sanduíche. Elas são o Norte e o Sul da embalagem, são o começo e o fim. Definitivamente, merecem um tratamento igual ao dispensado às suas irmãs fatias.







Rúcula

-A rúcula mudou a minha vida.
-Não simplifique as coisas, Lisa.
-Como eu consegui viver 37 anos sem rúcula?
-Nós temos questões mais sérias para tratar. Como essa sua mania de fugir do assunto.
-Estou falando sério. A rúcula parece amarga no início. Depois a gente vai mastigando e se apaixona.
-Na última vez, nós falávamos da sua família. Mais especificamente, da relação dominadora com seu pai.
-Culpa da minha mãe. Se ela tivesse colocado rúcula na mesa, eu não perderia tempo brigando com ele.
-Pela última vez, Lisa. Daqui a pouco o horário termina.
-E pensar que foi uma pizza com tomate seco e rúcula!
-Quero falar dos seus medos reais, não de salada.
-Mas eu enfrentei o medo do desconhecido: pedi pizza quatro queijos, como sempre. Quando abri a caixa e vi aquele matagal verde, fiquei furiosa. Aí a fome apertou e eu encarei a rúcula.
-Já entendi. Você está se escondendo atrás de metáforas. O queijo representa segurança, uma espécie de conexão láctea com sua mãe. Os quatro queijos, o amor em excesso. O matagal verde...
-Rúcula.
-A rúcula representa o paladar refém. Em outras palavras, a negação do afeto.
-Para que complicar tudo? A rúcula é uma salada. A combinação perfeita com o tomate, o contraponto da alface, o equilíbrio da salada mista. Pronto.
-Não é só uma salada. Você está querendo me dizer algo, Lisa.
-Só se for que eu estou com fome.
-Uma vez atendi uma paciente que só expressava seus sentimentos dando receita de bolo.
-Maluquice.
-Demorei meses para fazer a ligação da farinha de trigo peneirada com a morte trágica da sua bisavó.
-Eu, hein.
-Você me lembra ela. Como você prepara a rúcula, Lisa? Arranca as folhas do talo com as mãos ou com a faca?
-Acho que tá na hora de eu ir.
-COM AS MÃOS OU COM A FACA, ELIZABETE NUNES?
-Com as mãos. Nossa, nunca vi o senhor tão alterado.
-Eu sabia! As mãos arrancam as folhas porque o inconsciente não pode arrancar a mágoa! Seu pai come rúcula, Lisa?
-Agora essa!
-Como é a relação do seu pai com o agrião e o radiche?
-Melhor fazer terapia com empacotador de supermercado.
-Pois eu digo: você experimentou rúcula na tentativa de resgatar as pazes com seu pai.
-Acabo de me dar alta. Tem gente pior nessa sala.
-Lisa, volte aqui! Preciso saber como você tempera a rúcula!
-Vou deixar o cheque na recepção.
-Fuja do azeite de oliva, Lisa! O aceto balsâmico é a simbiose familiar!!
Depois daquele dia, Lisa passou a comer rúcula sem temperar. Melhor deixar passar um tempo. Ela ainda podia ver a boca daquele doido espumando como um vinagre vencido.

23 de ago. de 2008

Tudo ou nada

Fazer Nada pode ser a solução para todos os seus problemas. Se você pegou esse folheto e está lendo letrinhas tão miúdas é sinal de que precisa Fazer Nada mas não sabe como. Calma, a culpa não é sua. O mundo de hoje conspira contra aqueles que ousam desacelerar. Você faz parte de uma geração que nasceu para produzir e tenta exaustivamente esticar as 24h de um dia. Fazer Nada – isso sim – é fazer tudo.
Nossa empresa estudou a fundo a necessidade humana de se desligar da realidade e desperdiçar horas preciosas para só assim resgatar o equilíbrio interior. Chega de ser escravo da agenda e sempre achar tempo para novos compromissos. Fazer Nada exige coragem e quebra de paradigmas.
Quem disse que o sábado foi feito para resolver as pendengas da semana inteira? Nossas pesquisas relatam casos de famílias flagradas no sábado de manhã com listinha – em ordem alfabética – de coisas a fazer. Nada disso! Quem estipulou que domingo é dia de visitar a família e ocupar longas horas com fofocas? E a indústria do entretenimento? Já é tempo da sociedade saber que os jornais oferecem tantas programações de cinema, shows e teatro porque eles precisam encher aquelas páginas de algum jeito.
Fazer Nada exige força de vontade, disciplina e técnica. Use as nossas 15 regras de ouro e prove para você mesmo que é possível Fazer Nada.
1. Escolha um dia da semana onde você se vê forçado a otimizar cada minuto do seu tempo.
2. Se iniciar alguma tarefa, pare logo a seguir. O simples ato de arrumar uma gaveta torna o dia produtivo e descaracteriza o Fazer Nada.
3. Atenda o telefone, mas em hipótese alguma ligue para amigos e parentes. Colocar a conversa em dia, especialmente com quem você não fala há tempo, pressupõe um bom aproveitamento das horas.
4. Se você for assistir TV, faça do controle remoto seu grande aliado. Não fique mais do que um minuto sem mudar de canal. A não ser que você queira acompanhar uma novela ou uma entrevista botar tudo a perder.
5. Dormir em hora imprópria pode ser uma excelente maneira de Fazer Nada – desde que você não durma tanto a ponto de o sono ser considerado uma atividade.
6. (Fazer Nada é deixar de escrever uma das regras, por exemplo.)
7. Não se deixe levar pelo sol lá fora. Os parques e praças estão cheios de pessoas que gostariam de ficar em casa exatamente como você – fazendo nada – mas não conseguem porque se sentem na obrigação de aproveitar o dia.
8. Outra faceta traiçoeira da previsão do tempo é o clima chuvoso. Nuvens carregadas muitas vezes criam o clima propício para ler um bom livro e ver um bom DVD. Bom para os donos das livrarias e das locadoras, que não ganhariam nada com o desligamento do seu cérebro.
9. Ignore a pilha de papéis que vive há meses em cima da mesa. Se você não organizou até agora, não deve ser tão importante assim.
10. Fazer Nada provoca momentos de apatia e tédio, seguidos de grande ansiedade. É apenas seu corpo, acostumado a não parar nunca, tentando reagir. Por via das dúvidas, fuja de relógios, portas e chaves de carro.
11. Não use bicicletas e verbos. Tudo que indique movimento está fora de cogitação. O Fazer Nada requer que você não faça nada demais, apenas deixe o tempo passar.
12. Se você tem filhos, todo cuidado é pouco. Crianças são sugadoras por natureza e vão querer cada segundo da sua atenção. Se você chegou até aqui e está mesmo disposto a Fazer Nada, seja firme. Diga “Não, papai não quer brincar. Nem agora nem depois.” Trauma por trauma, sempre é preferível dizer a verdade.
13. Se você optou por Fazer Nada no fim de semana, esteja preparado para a fatídica segunda-feira. Seus colegas de trabalho vão chegar contando que fizeram mil coisas. Não satisfeitos, contarão os detalhes do rafting, do futebol, da festa, da saga para encontrar o restaurante atendido freiras albinas. Olhe para um ponto fixo e sorria. Você conseguiu Fazer Nada, meu amigo! Isso é o que importa.
14. Fazer Nada é um convite pessoal e intransferível. Muitos furões vão tentar entrar na sua, o que pode transformar um momento de paz em um súbito joguinho de canastra. Cabe lembrar que jogos são caracterizados como atividade e, como tal, devem ser evitados.
15. Fazer Nada é ter a certeza de que dias melhores virão. Dias sem horários marcados, sem listas, sem filas, sem desculpas furadas para ficar em casa e exercer o seu sagrado direito de Fazer Nada.
Essas 15 regras de ouro foram elaboradas a partir de premissas reais e análises definitivas – tanto que no meio do caminho os profissionais envolvidos decidiram largar tudo e Fazer Nada também.
Nossa empresa acredita que é possível construir um mundo livre de amarras, compromissos e obrigações. Cabe a você fazer tudo que os outros fazem ou Fazer Nada. Para maiores informações sobre o nosso método, se vire porque a gente já fez muito distribuindo esse folheto por aí.

22 de ago. de 2008

Elas chegaram

Quando se é mãe de dois meninos, isso é inevitável: um dia, elas chegam. E, no meu caso, esse dia e elas acabaram de chegar.
Três meninas de uma só vez. De sopetão. Um sopetão amenizado pelo telefonema do filho mais velho perguntando se elas poderiam subir mas, indiscutivelmente, um sopetão. Para uma casa até então só frequentada por cuecas, três calcinhas (quem sabe até algum sutiã mal preenchido) podem significar uma colméia, uma alcatéia, uma frota cor de rosa.
Escuto os risinhos da sala. É a primeira vez que eles convidam meninas para vir aqui. Um momento tão raro quanto ameaçador. Agora tenho dois tons de voz ecoando pelas paredes. Os agudos se juntaram aos graves com o pretexto de jogar Wii. Hoje boxe, tênnis, baseball. Amanhã cineminha, beijinho.
Doze anos e oito anos ouvindo “se comporta” parece que surtiram efeito. Incrível, meus filhos não estão correndo do jeito que sempre fazem quando convidam amiguinhos para brincar. Até mostraram o apartamento para elas – na verdade, mostraram seus quartos, mas não leia isso com conotação maliciosa. Não em respeito à uma mãe de dois meninos que, num sábado nublado e pacato, acordou de uma sesta para uma fase nova da vida. Além do mais as crianças, independente de sexo, sempre mostram seus quartos, especialmente quartos com computador e televisão. Pronto. Não tenho cabeça para acrescentar alguma estatística do Cartoon Network.
Como também sou uma pessoa educada, penso logo em oferecer um lanche. Sempre preparo um banquete-delícia para os amigos dos meus filhos. Não economizo na gordura trans e, para terror das nutricionistas, sou capaz de juntar pão de queijo, pipoca e bolo com cobertura de chocolate na mesma mesa. Mas uma luz entra pela janela da cozinha e ilumina o meu lado mais ciumento: muito cedo para alimentar três meninas coradas e encorpadas. Além do mais, já passou a hora de lanchar.
Por que as revistas, os livros e a Fátima Bernardes não nos preparam para esse momento? Ela, que tem meninos, meninas e a facilidade de anunciar o caos com um sorriso no rosto poderia ter me prevenido ontem à noite. Que nada. Ficou falando das Olimpíadas e dos chineses. E se eu oferecer espetinhos de gafanhoto será que elas vão embora mais rápido?
Faz meia hora que os meus filhos não gritam, não brigam, não se empurram, não se perseguem. Devem até estar sentados no sofá com os pés para baixo, contrariando a ordem natural das coisas. Comportamento alterado, hormônios idem. Tenho medo de ir na sala e encontrar meus meninos com pêlos no peito e barba por fazer. Eu, sócia-proprietária-majoritária de um harém masculino, mais cedo ou mais tarde vou ter que abrir a sociedade para a ala feminina. O mais tarde possível, com certeza.
Santo ano letivo! Acabo de lembrar que o mais velho tem prova na segunda-feira e o caçula tem tema para fazer. Prioridade para os estudos – ou a desculpa perfeita para voltar à estabilidade emocional. Deu. Chega. Por enquanto eu sou a dona dos brinquedinhos e escolho quem vai brincar.
Enquanto reflito sobre a velocidade desumana com que crescem os filhos, elas vão embora. Na saída, a mais bonitinha pega o jornal de domingo que estava no tapete da entrada e o deixa sobre a mesa. Truque baixo. Mulheres são capazes de tudo para agradar. A porta se fecha. Apesar do meu filho mais velho ficar grudado no olho mágico, estamos a salvo.

Ah se eu tivesse leitores

Esse blog foi feito pra ser a sua mesa de cabeceira, aquele lugar onde você estica a mão e pega algo pra ler sempre que dá vontade. Vou postar crônicas novas e velhas, matérias que escrevo pra algumas revistas, talvez até a novela que eu escrevi e engavetei. Ainda não decidi se vou seguir uma ordem cronológica ou misturar tudo. Já foi uma decisão e tanto deixar de ser boba e dividir tudo o que escrevo com você. Leia, volte sempre, comente se não gostou (e se gostou, comente com os amigos). Quero leitores, senão qual é a graça de escrever?