4 de nov. de 2008

Herança

Naquela noite, a escada não rangeu em sinal de respeito. Estavam todos ali, a ala do contra de pé e os puxa-sacos sentados. As crianças ficaram atrás da porta, esperando para ouvir cada detalhe.
O advogado foi o último a chegar. Entrou solene, cumprimentou a família com um aceno de cabeça e fez o sinal da cruz quando passou pelo porta-retrato da falecida. Depois sentou na cabeceira da mesa e tirou um papel da sua maleta de couro.
-Vou pular aquele bla-bla-blá inicial, se vocês permitem. E já aviso que não tem reclamação. A velha registrou tudo direitinho, mudou o texto cinco vezes. O que ela decidiu está decidido. Quem é a Geórgia?
-Sou eu!
-Ih, menina. Ela deixou as células adiposas para você.
-Cadela!
-Não seja mal-agradecida. Essas células adiposas estão há gerações na família.
A outra saiu chorando, melhor seria se tivesse saído correndo. Foi para o banheiro vomitar o que tinha no estômago.
-Cadê o Arnaldo?
-Eu.
-Nada pessoal, mas se fosse eu marcava urgente um eletro de esforço. A falecida deixou para você as artérias entupidas.
Uma risadinha abafada veio do fundo da sala. O advogado se virou e encarou o cabeludo.
-Você deve ser o Leonardo.
-Eu mesmo.
-Aproveite essa peruca farta. Você herdou a calvície.
-Não pode!
-Está no seu DNA. Perda prematura dos folículos capilares. Eu já vejo as entradas dizimando esse cabelão.
E assim, contra a vontade de todos, o testamento distribuiu a herança genética igualmente. A artrose, a miopia, o gênio difícil, o dedão do pé virado para fora, o nariz-batata, a mordida cruzada, a enxaqueca crônica, o sopro no coração, a estatura abaixo da média.
-E os olhos azuis, ficaram pra quem?
-A pele boa?
-Os dentes fortes?
-A pernas sem varizes?
O advogado se retirou do recinto. Ainda estava para nascer quem ia herdar ouro puro.

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