30 de set. de 2008

Revista Claudia, abril 2007

O pessoal da Claudia pediu uma continuação da matéria sobre o diário da minha operação. Tirando a foto megaultrapowerexagerada, acho que ficou na medida.

Quando Claudia me convidou para investigar o que os homens realmente acham de peito com silicone, olhei para os meus (peitos, não homens) e pensei: já sei a resposta, pelo menos lá em casa. Tirando os decotes, meu marido não tem o que reclamar. Aliás, elogia sempre. Para entrar no clima dessa matéria Ricardo diria que, quase um ano depois do emplacamento, meus peitos ainda têm cheirinho de carro zero. Machista? Ih, você ainda não leu nada. É a testosterona com a palavra. Munida de um questionário e uma blusa discretinha, fui a campo ouvir outras opiniões para dividir com você. Vai ser como entrar num vestiário masculino, e isso pode ser divertido. Não garanto isenção nas perguntas e muito menos na análise das respostas. Confesso que às vezes tive vontade de quebrar o protocolo e levantar a blusa para mostrar que nem todo silicone fica artificial. Conversei com publicitários, jornalistas, engenheiros, administradores de empresas, consultores, escritores, empresários e chefs de cozinha. O que posso garantir é que os entrevistados responderam de peito aberto – com o perdão do trocadilho.

Posso citar seu nome na matéria? Talvez essa tenha sido a pergunta mais embaraçosa. Temendo constrangimentos ou cenas de ciúmes, a maioria pediu para não ser identificado - chamarei esses precavidos de um único codinome. Como foi a primeira vez que você tocou num peito com silicone? Tinha fantasia a respeito? “Fantasia, não muita. Curiosidade, imensa.” (Homem, 48) “Notei que havia algo estranho, uma presença a mais na cama.” (Martin Haag, 41) “Tinha curiosidade de saber se faria algum barulho. Tchóin? Blup? Nhec? Não fez barulho, mas foi geladinho.” (David Coimbra, 44) “A sensação foi ruim, de algo artificial, meio duro, sem flexibilidade”. (Homem, 53) “Tinha curiosidade quanto à resistência, mas o gosto é o mesmo.” (Ricardo Beck, 26) “O primeiro que toquei tinha sido recém colocado, ainda dava para sentir as bordas da prótese na ponta dos dedos.” (Homem, 49) “Tenho a fantasia inversa, de peito natural, macio, formato de pêra.” (João L. Fonte, 24) “Foi estranho, a garota estava esperando uma avaliação, era mais um julgamento do que uma curtição.” (Gilberto Della Giustina, 42) “Achei melhor que peito pequeno, mas não se compara com o original”. (Homem, 24) Qual o lado positivo e negativo do silicone? “Estará sempre lá, no mesmo lugar”. (Homem, 26) “Se bem feito, fica incrível. Se mal feito, fica horrível.” (Homem, 27) “De positivo, muitos. Como aumentar a auto-estima das mulheres e outras coisas no homem. De negativo, só se for a inveja das amigas.” (Thiago Ferreira, 27) “Ver a mulher de bem consigo mesma não tem preço. É bom para ela e, consequentemente, bom para nós.” (Homem, 26) “O lado negativo não está no silicone em si, mas em quem coloca nele a responsabilidade de se tornar mais atrativa sexualmente, exagerando no tamanho.” (Cláudio Gzelchak Jr, 44) “Se você quer introduzir um corpo estranho no seu corpo, posso sugerir um tipo melhor... além do mais esse não é permanente: ele entra e sai.” (Homem, 48) Já teve dúvida se o peito era turbinado e ficou com vergonha de perguntar? “Se for silicone, ela vai falar, faz parte da coisa contar para os outros.” (Homem, 45) “Nesse caso se consulta os amigos da roda.” (Lucas Waechter, 25) “É como discussão de pênalti: passa o replay, analisa o lance, o movimento.” (Martin Haag, 41) “É só olhar: se os dois forem iguaizinhos, é silicone. Quando os peitos são de verdade, um é sempre maior que o outro.” (Homem, 49) “É que nem cabelo de homem pintado: se nota à distância.” (Homem, 53) “Costumo acertar. Inclusive sempre passo nos testes de revista masculina”. (Homem, 24) “Fiquei surpreendido quando descobri que eram 2 mísseis, originais de fábrica, apontados para cima!” (Homem, 31) Passou por alguma situação engraçada frente a um peito com silicone? “As cicatrizes em volta dos mamilos estavam bem visíveis, tinha medo que aquelas tampinhas saltassem.” (Homem, 49) “Ouvi um ‘não aperta muito’ e fiquei imaginando a prótese se deslocando para as costas.” (Ricardo Beck, 26) “Eu era o único homem no aniversário de uma amiga que ganhou os peitos de presente e lá se foram todas para o banheiro apalpá-la. Fiquei sozinho do lado de fora.” (Vinicius Malinoski, 25) “Já vi um que era tão desproporcional que parecia cômico.” (Homem, 54) “Pedi para apertar e levei um imenso ‘não’. Todas as mulheres apertam, por que essa discriminação com os homens?” (Lucas Waechter, 25) Um striptease com peitinho ou um papai-mamãe com peitão? “Papai-mamãe com peitão!! - será que alguém vai responder diferente?” (Homem, 26). “Os dois, de preferência ao mesmo tempo.” (Thiago Ferreira, 27) “Striptease com peitinho é mais sensual”. (Jorge Nascimento, 41) “Um peitinho mais ousado é melhor do que um peitão que acha que está podendo”. (Homem, 27) “Qualquer coisa desde que com peitão. Mas também não recusaria a primeira opção”. (Heleno Schneider, 30) Mulher com silicone age diferente na cama? “É mais exibida, mais solta, mais orgulhosa do próprio corpo. Elas ficam sem vergonha, em ambos os sentidos.” (Homem, 49) “Quando é recente, algumas querem experimentar coisas que antes não podiam fazer... e viva a Espanha!” (Cláudio Gzelchak Jr, 44) “O silicone traz uma feminilidade e principalmente uma segurança que melhoram muito as atitudes da mulher na cama.” (Homem, 27) “Enquanto elas não estão adaptadas ao novo ‘modelo’, não param de olhar”. (Homem, 40) Mulher com silicone muda a forma de se vestir? "Claro! O silicone faz parte de um projeto muito amplo onde entra a postura, academia, roupas novas e até, quem sabe, um homem novo.” (Martin Haag, 41) “Se pouco peito é sem graça, peitão siliconado balançando e saindo para fora é engraçado.” (Homem, 27) “Lógico. Decotes profundos como Nietzsche.” (David Coimbra, 44) “Algumas ficam ajeitando os peitos toda hora, como se fossem uma peça de roupa.” (Homem, 33) “Óbvio que sim, para mostrar o investimento. Principalmente para as amigas, sempre as amigas.” (Homem, 49) É melhor peito com silicone na sua mulher ou na mulher dos outros? “Na minha, na dos outros, em todo mundo”. (Homem, 27) “Em todas que fiquem bonitas e se sintam mais felizes.” (Jorge Nascimento, 41) “Como um cara casado eu prefiro na minha mulher, pois o que é dela é meu”. (Daniel Pettenuzzo, 28) O silicone da vizinha sempre vai parecer mais macio que o da sua mulher”. (Homem, 49) “Na dos outros, na minha deixa natural”. (João L. Fonte, 24) “Gosto de secar a dos outros mas também de me exibir com a minha”. (Rafael Bedin, 27) Homem olha para peito por força de hábito ou porque realmente não consegue evitar? “É automático e involuntário. Desculpem-nos, mulheres, se às vezes perdemos a concentração no meio da conversa.” (Heleno Schneider, 30) “Não conseguimos evitar por força do hábito. E por força do hábito, não conseguimos evitar”. (Homem, 30) “Eu vejo aquele vale desenhado na minha frente e dá vontade de fazer parte de tudo aquilo, colocar uma casinha ali e assistir da varanda os dias passando.” (Martin Haag, 41) “Com a moda do silicone, prefiro olhar para as bundas, que ainda permanecem naturais”. (Homem, 33) Filosoficamente falando, homem gosta de peito grande porque tem saudade do tempo em que só mamava, só dormia e não tinha contas para pagar? “Não gosto só de peito grande. Dou valor aos médios empinados e aos pequenos orgulhosos também.” (David Coimbra, 44) “Filosoficamente falando, homem gosta de peito e pronto. Gosta de bunda e pronto. Gosta de mulher e pronto.” (Homem, 26) “Sempre é bom ter onde mexer, pegar, abocanhar. Homem gosta de manipular, faz parte da masculinidade”. (Homem, 45) “É tara mesmo, o instinto procura a mais bem preparada.” (Homem, 24) Se você fosse mulher, colocaria silicone? “Se tivesse peito caído, com certeza. Ou se fosse muito pequeno”. (Homem, 31) “Se tivesse um zíper, acho que sim. Para tirar e botar quando bem entendesse.”(Homem, 49) “Será que no clitóris funcionaria?” (Homem, 48) “Não, eu usaria roupas que favorecessem, sutiãs que aumentassem, e trabalharia para que a moda do peitão passasse.” (Homem, 53) “Depende: isso me deixaria mais feliz ou é porque todas estão colocando?” (Homem, 24) “Creio que não, da mesma forma que não tenho cabelo e não uso peruca”. (Homem, 42) Olhar peito com silicone e não poder tocar é como ir ao shopping sem dinheiro? “Olhar já dá uma certa satisfação, mas não substitui o roçar dos dedos, a sensação de apertar os dois ao mesmo tempo.” (Homem, 49) “Até é, mas dá pra se divertir bastante imaginando como aquela roupa da vitrine cairia bem em mim.” (Homem, 27) “É pior. Um belo par de peitos é muito mais irresistível que qualquer liquidação.” (Thiago Ferreira, 27) “Depende da dona da ‘carteira’. Tem mulher que pode estar com uma D&G e não saber carregá-la. Tem outras que podem estar com uma bolsa sem marca e ser um charme.” (Homem, 40)
Vai dizer que você também não se sentiu num vestiário masculino? Com ou sem silicone, eles olham. E olham muito. É como se os homens já nascessem com o cargo vitalício de catalogar os peitos mais bonitos, harmônicos e perfeitos. Óbvio que peitos turbinados atraem ainda mais olhares. Mas os exagerados só fazem sucesso em pornografia. Na vida real, a preferência é o peito que encha a mão e seja gostoso de apertar. Os homens que testemunharam – como disse alguém – a “experiência antropológica” do Antes e Depois adoraram as mudanças externas e internas na parceira. Já os traumatizados não guardam boas lembranças. É como disse um dos entrevistados: “Entenda que há beleza em seios pequenos, médios e grandes.” E eles dão a dica: “mais importante do que ter, é saber o que fazer com os peitos.”

Peito com silicone é como...
celular: não sei como antes eu vivia sem.
final de campeonato: decisivo.
ar condicionado: sinto mais falta no verão.
carro automático: não sei como é mas logo pego o jeito.
produto paraguaio: não confio e não recomendo.
sexo: nunca é demais.
cerveja no verão: desce redondo.
salsicha: gostoso mas é melhor não saber como são feitos.

29 de set. de 2008

Economia de guerra

A crise bateu feio na casa dos Silva de Andrade e Almeida. O sobrenome já era um excesso, precisava tudo isso? Eles poderiam muito bem viver com apenas um. Optaram pelo Silva, mais popular e condizente com a pindaíba atual.
Economia de guerra era a nova regra da casa. E que ninguém quebrasse essa regra porque não tinha dinheiro para comprar outra.
Começaram cancelando as assinaturas de jornais e revistas, passando a surrupiar a Veja do primeiro vizinho que a dispensasse no lixo. As notícias não ficavam tão velhas de uma semana para outra, sempre alguém matava alguém, um famoso descasava de outro famoso, as falcatruas seriam sempre falcatruas.
Depois de cortar até manga de camisa, respiraram fundo e atacaram um ponto nevrálgico do orçamento: a lista de supermercado. A partir de agora, supérfluos como biscoitinhos em formato de urso teriam que ganhar autorização do Ibama para entrar na lista de compras. Bebida, só água da bica. Palmito, não. Cogumelo, nem pensar (só se nascesse no vaso de plantas). Filé, fora de cogitação. E os dentes da família, alinhados a peso de ouro? Todos podiam mastigar um músculo traseiro previamente amaciado com casca de mamão. E assim, sem piedade, riscaram itens antes consumidos sem dor na consciência. Foi quando alguém lembrou dos produtos de limpeza.
A empregada, já instruída a grudar restos de sabonete até formar aquela bola multicolorida, levou um choque quando comunicaram que a caixa aberta de Omo Dupla Ação Cores Plus seria a última. Marcas líderes, o fim de uma era. Elas nada mais eram do que uma dependência estabelecida pelos meios de comunicação de massa (falando em massa, Barilla non. Falando em italiano, cancela as aulas). Quem disse que roupas de fino trato não podem ser lavadas com marca diabo? Eles ainda tinham roupas de fino trato para lavar e pendurar nos cabides (de lavanderia, mas eram cabides. Lavanderia, outro fim de outra era). Comprar Omo cegamente era um preconceito em relação a... a... a... ninguém lembrava os nomes de sabão em pó existentes no mercado. Bando de mal-acostumados.
Não demorou até que a família chegasse ao assunto mais polêmico da casa, algo sempre poupado em crises anteriores dada a complexidade do tema: o papel higiênico. Precisava comprar papel higiênico colorido? Com essência de óleo de amêndoas? Com camada ultra-extra-soft com picotes light, que não agridem a natureza da sua pele? Alfreeedo, traz o lixinha.... A filha se rebelou e disse que até abria mão do sobrenome pomposo, do palmito, da Barilla. Mas se fosse obrigada a usar lixa nas partes íntimas, sairia de casa. O pai topou na hora. Uma boca a menos.

26 de set. de 2008

Queria escrever de novo para Revista Estilo Zaffari

Escrevendo essa matéria, eu me senti meio jornalista, meio turista, meio falcatrua. Mas gostei do resultado.



Atenção: este é um texto cheio de palavras japonesas. Mas fique zen porque você não vai precisar de tradução simultânea. A idéia é justamente mostrar quantos japonismos já foram incorporados ao samba nosso de cada dia. E vice-versa.
Vamos começar com um passinho para cá, dois para lá: a palavra sushi dispensa apresentações e foi deliciosamente explicada na matéria de capa. Agora, cá entre nós, Manekineko pareceu grego para mim. Eu conhecia os simpáticos gatinhos mas não sabia que eles tinham esse nome. Amuleto típico do Japão, o Manekineko é um primo sortudo da Hello Kitty e possui diversas cores e significados: o gatinho manchado é o desejo de sucesso profissional, o preto atrai saúde e o dourado (adivinhe!) é riqueza na certa. Se o gato estiver com a patinha direita levantada, você vai encontrar um grande amor. Se for a patinha esquerda, prepare-se para receber bens materiais. Sim, os japoneses também são supersticiosos como nós. Vire a página e descubra que as semelhanças não param por aí.

O japão aqui

Enquanto os japoneses dormem no outro lado do mundo e sonham com celulares miniatura implantados no tímpano, o ocidente vive um dia-a-dia cheio de referências nipônicas e nem se dá conta. Se a palavra ocidente parece distante demais para você, esqueça a Europa e os Estados Unidos. Feche seus olhos e pense no Brasil.
Pedro Álvares Cabral ia achar uma piada se voltasse agora ao Brasil e descobrisse o nosso japa way-of-life. Nas praias, garotas com os cabelos presos com hashis revelam suas nucas tatuadas com ideogramas japoneses (eles continuam em alta nas melhores casas de tatoo do ramo). Nas baladas, essas mesmas mulheres surgem de cabelos exageradamente lisos por horas de escova, chapinha japonesa e progressiva - quem sabe tentando ser gueixas à procura de samurais nas pistas de dança.
No centro das cidades, lojas de departamento vendem filmadoras Sony, máquinas digitais Panasonic e DVDs que vêm com tudo – inclusive karaokê, o passatempo preferido dos japoneses. As empresas de locação para festas que o digam: o karaokê e suas pastas cheias de opções musicais animam desde aniversário de sete anos a jantar de gente grande. Apesar de eu não achar graça em ver a imagem congelada do Monte Fuji e a letra da música pulando na parte de baixo do vídeo, o povo se diverte e canta aos berros para então ganhar uma nota. Silêncio, alguém lá dentro da TV está pensando... seis e meio!! Parabéns, você é um excelente cantor de chuveiro!
Na hora do almoço, o feijão com arroz parece brasileiro demais. Melhor chamar um telesushi, passar por um sushi-drive ou descongelar um Yakissoba comprado no supermercado. Se a fome for pouca, um Miojo Nissin ou uma saladinha de cogumelos Shitake temperada com molho Shoyo resolvem o problema.
De tarde, adultos estressados fazem shiatsu no trabalho e idealizam um banho de ofurô no fim do dia. Já as crianças tomam Yakult com lactobacilos vivos e se divertem com a infinita quantidade de desenhos japoneses. Cavaleiros do Zodíaco, Yu-Gi-Oh, Pokémon e Samurai Jack agitam ainda mais os meninos. E para as meninas que amam a gatinha Hello Kitty, tem Ami e Yumi - inspiradas nas roqueiras japonesas mais pop da terra do sol nascente. Se tudo isso parecer coisa de criança, as adolescentes podem ligar a TV e copiar o modelito que a atriz japa-fashion Daniela Suzuki está usando. Os garotos vão preferir fazer origami com o cérebro de quem inventou essas bobagens e certamente irão escolher um videogame de lutas marciais. Ou ler Mangás – as histórias em quadrinhos japonesas que cada vez mais conquistam os brasileiros.
A moda ocidental há tempos reverencia estilistas japoneses como Kenzo, Issey Miyake, Yoji Yamamoto e Rei Kawakubo da Commes des Garçons. Quimonos e Obis vão e voltam nas passarelas, orientalizando os guardaroupas de tempos em tempos. A indústria da beleza também pede a benção aos lançamentos da Shiseido. E que brasileira seria kamikaze a ponto de ignorar as japonesas com sua pele alva e macia, a boca vermelha e pequena como uma cereja, o cabelo impecavelmente liso, os gestos delicados e o corpo esguio?
Apertando os olhos e forçando o foco no Rio Grande do Sul, descobrimos que o Japão também é aqui. Pegue seu Toyota ou Honda e vá até a Praça Japão, no coração de Porto Alegre. Ou o recanto oriental da Redenção num belo domingo de sol. Você vai ver muito gaúcho da gema tomando chimarrão misturado com chá verde. Faz bem para a saúde, sem dúvida. Mas virou moda. Quem preferir tomar mate no aconchego de casa pode escolher a poltrona perto da luminária japonesa e apoiar os pés num futon de seda. Ou então ir para a tranquilidade da sacada decorada com pedrinhas brancas e muro de bambus onde corre um fio de água da fonte presa na parede – opa, alguém andou vendo revistas zen e buscou inspiração nos jardins japoneses. Só falta um Bonsai no centro da mesa e carpas no aquário do banheiro.
Se antes eu achava exótico ter bala de algas para vender no supermercado, imagine agora que fazem no interior do Estado até campeonato de Sumô, a tradicional arte que surgiu no Japão há milênios. Por isso, minha amiga, pegue um saquê e faça um brinde a tudo de bom que vem do Japão. Desde, é claro, que os gafanhotos caramelizados permaneçam bem longe daqui.

O Brasil lá

Enquanto os brasileiros dormem e sonham com o final das CPIs, no lado de lá o Japão acorda e se prepara para outro dia de trabalho árduo – especialmente se forem os mais de 250 mil dekasseguis, descendentes de japoneses que largaram o Brasil para voltar à terra dos antepassados.
Mas não pense que eles só enxergam as linhas de montagem na sua frente. Depois de um dia puxado dentro das fábricas, nada como pegar a bicicleta e ir até o bar mais próximo tomar uma cerveja com os amigos. Se o assunto for futebol, a pedida é uma Brahma ou Antarctica (que atravessaram o mundo e continuam geladíssimas) e ficar conversando sobre a atuação do Zico, técnico da seleção japonesa de futebol. Quando o assunto terminar, os brazucas podem fazer como os nativos e apreciar as árvores de Cerejeira que florescem e formam túneis cor-de-rosa. A beleza é tanta que o garçom vai entender se você levantar o dedo e pedir “Salta um Haicai na mesa 3!” Em caso de fome, que venham o pastel e um churrasquinho de saideira.
Se mesmo bebendo ficar difícil entender o que eles falam, nada de pânico. Onde tem brasileiro, tem jeitinho para tudo. Um bom exemplo é o jornal semanal Tudo Bem, editado pela JBC – Japan Brazil Communication, que também faz a ponte aérea de mangás e livros. O jornal é escrito em português e vendido em mais de 400 locais, além da versão atualizada diariamente na internet. É um verdadeiro guia de sobrevivência para os conterrâneos que vivem no Japão e também um elo de ligação com o Brasil.
Site lembra internet, que lembra cybercafé, que dá uma vontade louca de tomar um cafezinho. Se você é como eu, movida a expressos e capuccinos, fique tranquila porque os japoneses já descobriram o kohi (do inglês coffee) e tomam o pretinho quente ou frio. É, aos poucos nós estamos invadindo a ilha. Já exportamos até manifestações culturais típicas como a festa de São João e, claro, o carnaval que no Japão se chama Matsuri e também enche as ruas de alegria. Quem sabe o próximo a cruzar o oceano é o Festival de Parintins – consigo imaginar os bois Caprichoso e Garantido dizendo arigatô no final.
Samba, música sertaneja, show do Supla e gente pulando com a Sandy e o Júnior pedem licença ao J Pop (como eles chamam o som pop nipônico) e arrancam bis da galera. E mesmo que os japoneses fabriquem ídolos na mesma velocidade com que produzem eletrônicos, sempre tem palco sobrando para o astral dos brasileiros. Até a Turma da Mônica enfrentou o jet lag para mostrar os planos infalíveis do Cascão e Cebolinha, o pêlo azul do Bidu e a gula da minha xará – aposto que a Magali deve ter adorado as melancias sem sementes que eles inventaram.
Nova Iorque ficaria com ciúmes se visse a quantidade de lojas que vendem produtos brasileiros nas ruas do Japão. Em algumas cidades, há placas em português e o brazuca way-of-life bomba nas vitrines. Falando em consumismo, nós parecemos o Tio Patinhas perto dos orientais. Pegue sua máquina digital e vá para os bairros de Shibuya e Harajuku. Você vai se sentir numa Disneylândia fashion - ou dentro de um Mangá-rave, quem sabe numa festa a fantasia de dragqueens. Imaginou algo excêntrico e bizarro? E é mesmo. Foi o jeito que a molecada encontrou para acabar com esse papo de que japonês é tudo igual. Quando a semana termina e eles tiram os sisudos uniformes do colégio, o negócio é se vestir de Anjo de Luto, Sailormoon da Sapucaí, Barbie-Pikachu, Gueixa Psicopata, Marilyn Shoyo Manson e curtir o domingo, cada um na sua tribo.
O Japão é assim, muita informação para assimilar. Ouvi dizer que tem japonesa colocando silicone no bumbum para imitar o nosso padrão estético. E não vou estranhar se a Ana Maria Braga ensinar a fazer cuscuz de sashimi no seu programa. O fato é que as culturas oriental e ocidental nunca se misturaram tanto. Viva a globalização que transformou o globo numa bolinha de pingue-pongue que a gente joga de lá para cá. Sophia Coppola que me perdoe, mas existem muito mais encontros do que desencontros com os japoneses.

25 de set. de 2008

Turbulência

-José Antônio! Você tirou foto das nuvens!
-Qual é o problema?
-Parece até que foi a primeira vez que andou de avião.
-Olha que tapete branco e fofo, Solange.
-Foto de nuvem, José Antônio. Sinceramente.
-Aqui embaixo elas são apenas coadjuvantes.
-Nuvem é sinal de chuva, isso sim.
-Mas lá de cima, a gente vê que o céu é quase nada. Existe uma cidade de nuvens, Solange.
-Só pode ser algo estragado que você comeu no vôo.
-E eu seria doido de olhar para aquelas barrinhas com tanta nuvem para admirar? Acho que as nuvens dizem "Xis" para sair sorrindo nas fotos...
-José Antônio, você está me assustando...
-As nuvens são seres mutantes, libertários e muito fotogênicos.
-Nunca vi tanta bobagem.
-Pois devia. Olhar as nuvens purifica.
-José Antônio da Silva Paes, quem é a loira nessa foto?
-É a Vanda da 6B, também uma apreciadora das nuvens.
-Desde quando você canta mulher em vôo?
-Eu sentei na 6A, ela na 6B. A gente mal se falou até eu abrir a janelinha.
-Duvido.
-Depois a Vanda achou uma nuvem que parecia o meu chaveiro em formato de J.
-E eu que desconfiava de aeromoça.
-Com toda aquela claridade eu vi melhor as coisas, Solange.
-Hã?
-Você é uma nuvem preta. E a Vanda disse para eu ter cuidado com as nuvens pretas.
-Eu sabia! Você tá de caso com essa mulher!
-A Vanda é ótima mas não é perfeita. Deve ser por isso que ela é ótima.
-Uma vagabunda aérea! E não se atreva a dizer que ela te deixou nas nuvens!
-Eu e a Vanda vamos entrar para a Tobogã Sagrado, uma seita de estudiosos da anatomia das nuvens.
-E eu vou entrar numa pensão bem gorda para falir você.
-Aquela nuvem que passa lá em cima sou eu, um novo homem.
-Demente safado!
-Solange, libera os trovões que relampejam aí dentro.
-Vou liberar é a porta da rua, desgraçado.
-Ah, cancelei nossos bilhetes para Miami. Vou doar as milhas para quem nunca andou de...
José Antônio não terminou a frase. Levou um chute na sua pista de pouso e apagou de tanta dor. Ficou atirado no chão da sala, vendo estrelas e o céu preto.
Solange deu um último soco no que sobrou do José Antônio, pegou o cartão de crédito dele, uma muda de roupa dela e foi para o aeroporto. Ia comprar passagem para o primeiro vôo que encontrasse. Já estava na hora de ver outras nuvens e de juntar suas próprias milhas.

24 de set. de 2008

Revista Claudia, outubro 2006

Minha estréia na Revista Claudia. Desde então tenho a honra de dizer que sou colaboradora da editora Abril.



Sou libriana como Claudia. Quando você ler essa edição de aniversário, vou estar curtindo o presentão que me dei de 39 anos: peitos novos. Sim, eu poderia ter escolhido um vestido, uma bolsa, uma sandália, uma viagem. Mas como disse meu melhor amigo, o que adianta passar uma semana em Salvador e continuar sem peito?
Não que os meus fossem invisíveis. Até eu fazer um regime quatro anos atrás e perder onze quilos, eles eram satisfatórios. Longe de serem o ideal. Depois que emagreci, o pouco se foi e começou a fazer falta especialmente no verão. Usando uma metáfora, é como se eu tivesse redecorado toda a casa mas havia ainda um cantinho que poderia ficar mais acolhedor e ser melhor aproveitado. Eu, que suei tanto para diminuir três números do jeans, estava louca para aumentar alguns números do sutiã. E haja coragem para assumir que uma mulher sem vocação para stripper quer ter peitão.
Talvez a indústria da lingerie mereça um busto em praça pública por ter me apresentado ao sutiã com enchimento (não... pensando bem, se alguém merece é meu amigo, o primeiro a pronunciar a palavra silicone em voz alta e olhar em minha direção). Foi enganando a torcida no dia-a-dia que percebi a diferença que faz um plus a mais. O único problema era tirar o sutiã e aceitar a verdade. Se era para viver com enchimento, então que fossem os meus.
Pesquisando na Internet descobri um universo de possibilidades: prótese lisa e texturizada, perfil alto e baixo, formato redondo, em gota ou natural. E também questões delicadas como encapsulamento, anestesia, seroma, incisão via aréola, axila, inframamário e uma lista de pode-isso-não-pode-aquilo. Aos poucos essas informações foram sendo absorvidas e meu cérebro gentilmente as transformou em decotes generosos, regatas, blusinhas de frente única. Sim! Se as mulheres fazem tudoplastia e sobrevivem cheias de hematomas para contar, por que justo comigo daria problema?
Era só não pensar que iriam abrir duas gavetas no meu tórax e guardar lá dentro o silicone (nessa hora lembrei do silicone de colocar nos móveis, na esteira, no pneu). Mesmo assim, decidi entrar na faca e algumas consultas depois perguntava se não dava para dar uma forcinha e puxar para dentro das gavetas uma pelanquinha que sobrou dos partos. Esquece. Fica para a próxima.
Ah, a primeira consulta. Por ser indicação de uma grande amiga e guru, eu já simpatizava com a médica antes de conhecê-la. Só não contava com o nervosismo. Minhas mãos suavam frio na sala de espera. Eu já estava me achando um homem de tanto olhar para seios nas ruas e revistas. Caso não conseguisse abrir a boca, era só mostrar o recorte de uma página com o par de seios mais lindos que consegui encontrar. O que eu ia dizer? Oi, meu nome é peito e quero Magali - ou algo assim. Pensei em inventar um trauma de infância, mas aí a médica abriu a porta e a cumplicidade foi instantânea.
Quando vi, tinha feito até test-drive de teta (e adorado!). "Mas não quero aquele degrau que fica em algumas mulheres. Quero um peito tipo escada rolante, que vai surgindo e subindo. Não quero me sentir gorda ou matrona. Nem virar a cover da Pamela Anderson. Não quero me arrepender. Nem de colocar muito. Nem de colocar pouco." Além de cirurgiã plástica e mastologista, eu queria que ela fosse psicóloga?
Mesmo a adorando desde o início, quis ouvir uma segunda opinião. Um cirurgião também superindicado, supercompetente e... precisava ser supercharmoso?! Ele está acostumado a ver tudo, pensei. Óbvio que viu o meu constrangimento. Fiz milhares de perguntas tentando adiar o inevitável: mostrar meus peitinhos para aquele homão. Antes que você me chame de tarada, explico. Faço parte da ala feminina que prefere ginecologista mulher porque se sente mais à vontade e acaba usando o mesmo raciocínio para outras especialidades médicas - especialmente quando tem que tirar a roupa. Na hora do vamos-ver, mirei um ponto fixo na parede e desabotoei a blusa. Ele olhou e eu murchei com sua reação: "é... tem que botar".
Não pense que foi fácil reconhecer que eu queria ficar turbinada. Depois de lidar com meu próprio preconceito, tive que abstrair o preconceito dos outros. Sobrancelhas levantaram e testas franziram quando contei minha intenção. "Silicone? Você!?". Ouvi relatos escabrosos do silicone que escorregou pâncreas adentro, a prótese que foi parar no dedão do pé. E com tanta gente passando fome no mundo, eu ia gastar dinheiro com algo tão... tão.. fútil?
Ainda bem que a maioria vibrou e as amigas fizeram contagem regressiva comigo. Cada uma sabe onde aperta o sutiã. Ou onde ele afrouxa. Conversando com diversas neo-peitudas, descobri que o único arrependimento era não ter colocado um pouquinho mais. Isso me fez repensar os mililitros. Não era só o tamanho da prótese, o que eu estava mensurando era sensualidade e auto-estima.
Lembro da primeira vez em que, meio de brincadeira, comentei a idéia com meu marido. Ricardo abriu um sorriso e me surpreendeu com um belo "e por que não?". Se eu tinha uma intenção, ele tinha segundas. O engraçado foi acompanhar as mudanças no seu comportamento. A empolgação inicial se transformou em insegurança quando ele viu que eu estava mesmo decidida. "E se eu achar que está muito decotado?". Para me ajudar, um amigo nosso o tranquilizou dizendo "mulher que bota silicone quer mostrar". Mas nada como dar tempo ao tempo. Sabe o bebê que olha para a mãe e vê uma mesa posta? Depois eu podia jurar que Ricardo olhava para mim e via uma plaquinha "Breve aqui Playground".
Falando nisso, eu ainda precisava contar a novidade para dois homenzinhos: meus filhos de 10 e 6 anos. Enquanto o menor já fez disso uma brincadeira e ficou imitando como a mãe ia ficar "tetuda", o mais velho perguntou por quê. Expliquei que se a gente não gosta de algo no corpo, pode mudar. O argumento não fez muito sentido. Aí falei que eu queria ficar bonita. Ele me olhou com aquele jeitinho amado e disse: "mas mãe, você já é bonita". É, Rafinha, vá entender as mulheres.
Se eu tivesse um numerólogo, ele se orgulharia da data que marquei a cirurgia: 7 de 7 para o verão 2007. Finalmente o dia chegou e eu estava tranquila. Optei por anestesia local e sedação – desde que eu apagasse por completo. O procedimento durou menos de duas horas e fui para casa no mesmo dia. Não doeu nada. Claro que a primeira coisa que fiz ao acordar na sala de recuperação foi espiá-los (depois fiquei sabendo que a primeira palavra que pronunciei ainda sonolenta foi “Biquíni!!”). A diferença era visível. Mas como já saí da cirurgia usando um sutiã-modelador-armadura, não consegui ver direito. Só fui apresentada oficialmente a meus peitos novos 24h depois, quando voltei para tirar o dreno. Ao abrir o sutiã, eles saltaram lépidos e faceiros. Muito prazer! E o prazer era todinho meu.
O pós-operatório foi tranquilo, mas foi um pós-operatório. De chegada, precisei de ajuda até para escovar os dentes (e me irritei muito). Fiquei presa em casa mas mantive os olhos pintados. Minhas mãos e barriga incharam tanto que parecia um dejà vú de gravidez. Morria de medo de mexer os braços e acabei tensionando de tal forma os ombros que precisei de sessões de fisioterapia. Num excesso de zelo, troquei de cama e de quarto. Dormi algumas noites sentada no sofá da sala. Fiquei sem dirigir por 2 semanas e sem fazer esporte por 45 longos dias (que medo de engordar!). Tive um princípio de inflamação em uma das cicatrizes. Mas o pior de tudo foi o desconforto de dormir de barriga para cima – eu e 7 travesseiros tentamos tantas posições que daria um Kama Sutra do Sono. Já o fator mais valioso da recuperação foi a total disponibilidade da cirurgiã, sempre tão cuidadosa, rápida e carinhosa.
A volta ao trabalho também foi um momento marcante. No imaginário das pessoas, o silicone é necessariamente extravagante. Frustrei os que esperavam me ver com estrelas prateadas nos bicos dos seios. Grande mesmo era a curiosidade de todos. Teve até uma amiga que não resistiu e me apalpou em plena luz fluorescente. Alguns olhares eram disfarçados. Outros, bem objetivos. E eu sentindo um misto de orgulho e vergonha. Se tem uma frase que diz tudo foi a que ouvi do meu chefe quando voltei de uma consulta para tirar os pontos. Ele perguntou se estava tudo bem. Repetindo as palavras da médica, falei que era para ficar em observação. Ao que ele prontamente se ofereceu: “Então observaremos!!!”.
Como uma boa libriana que pesa tudo na balança, valeu muito a pena. O resultado ficou bem como eu queria: natural e sensual. É como se eu recuperasse algo que era meu de direito. Que sensação gostosa sentir o braço roçar na lateral do seio. E comparar as fotos de antes e depois da cirurgia! Meus sutiãs novos são lindos e meus peitos, mais ainda. Plagiando aquela clássica preocupação masculina, descobri que tamanho é importante, sim.

23 de set. de 2008

Os esquecidos

O abridor de latas perguntou para o descascador de batatas qual foi a última vez que ele havia sido usado naquela cozinha. Boa pergunta, respondeu o outro. Fazia tanto tempo que ele nem lembrava. Ontem mesmo ele e o coador pequeno estavam conversando sobre isso. No fundo da gaveta, onde os dois ficavam, tinha até teia de aranha. Já o coador grande não podia reclamar, disse o abridor de latas com uma pontinha de inveja.
O coador grande, que ouvia a conversa de longe, aproveitou a deixa para se manifestar. Ele era bem solicitado, sim. Até demais. Mas para coar miojo, que não era a sua função e o colocava numa situação delicada com o escorredor de massas, seu amigo desde os tempos do supermercado. De tanto coar miojo e ir parar na lavalouça, sua tela estava ficando escura. Desse jeito, logo ele seria aposentado no lixo e o substituiriam por um coador inexperiente, que ia levar água fervendo na cabeça e agradecer.
Panela velha é que faz comida boa, gritou uma voz que veio do armário de baixo da pia. Era a panela de alumínio, já sem cabo e sem tampa. Ela, que foi a responsável por carreteiros inesquecíveis, agora passava os dias vendo a ascensão das colegas de teflon. Aquele armário parecia uma loja de tantos tamanhos de panelas. E uma loja às moscas, porque ultimamente ninguém se dava ao trabalho de pegar uma delas para cozinhar.
O abridor de latas, o descascador de batatas, os coadores e a panela de alumínio não eram os únicos insatisfeitos. Ainda bem que a turma do armário aéreo não podia ouvir. Lá dentro, o mixer e a fritadeira elétrica esperavam sua liberdade há anos. Eles queriam ser úteis, misturar ingredientes, picar legumes, fritar batatas fritas, essas coisas que os eletrdomésticos modernos fazem. E nunca viam a luz da fluorescente. Lá dentro a solidão era tanta que esse armário ganhou o apelido de solitária. Quem entrava, não saía nunca mais.
Em cima do balcão, a iogurteira lembrou dos áureos tempos, quando o iogurte caseiro estava em alta na família. Ela passava a noite inteira ligada proliferando lactobacilos. O iogurte ficava tão bom que os seis potinhos de vidro imediatamente esvaziavam e voltavam para a base da iogurteira, que chegava a ser requisitada duas vezes na mesma semana.
O microondas ficou quieto no seu canto. Por ele, o trabalho podia ser dividido entre todos. Pipoca e arroz na panela de alumínio, por exemplo. Pizza no forno do fogão. A torradeira e o grill concordaram em gênero, número e grau. Eles não passavam um dia sem preparar sanduíches. O pessoal da casa era mais do lanche, fazer o quê. Pressão, disse uma das panelas. E um feijãozinho, please.
Os ânimos se exaltaram. A conversa ecoou pela cozinha, os azulejos ficaram nervosos e começaram a suar. O filtro de água aproveitou o clima e disse que não aguentava mais pingar o dia inteiro. O liquidificador perguntou se existia sindicato de eletrdomésticos. O fogão abriu as quatro bocas e disse que estava nessa. A geladeira deu apoio. A agitação era tanta que os talheres se batiam dentro das gavetas. E se alguém ouvisse o barulho, o que ia ser deles? A lavalouça ligou a pré-lavagem para disfarçar.
Os donos da casa apareceram. Pela quantidade de sacolas que troxeram do supermercado, hoje ia ter movimentação. Quem sabe um jantar à luz de velas com entrada, prato principal e sobremesa. Que nada. O homem e a mulher trocaram de roupa e saíram de novo, combinando em que restaurante iam jantar. E ainda deixaram todas as compras no chão da cozinha.

22 de set. de 2008

A seco

Ligar para a lavanderia. Foi esse o recado que a Heloisa encontrou quano chegou em casa. O que será que eles queriam? Movida pela curiosidade, pegou o papel com o número do telefone e ligou.
-A senhora ganhou uma linda escova de tirar bolinha de roupa!
-Eu?
-Sim! Pela quebra de recorde! Oito meses e três dias…
-Que recorde?
-É o tempo que o seu edredon está aqui! E quase deu empate. Tem uma Carmem que não busca um vestido há 6 meses e meio…
-Não lembro de ter deixado nada para lavar…
-Um edredon branco com bolinhas vermelhas e um remendo mal-feito em uma das pontas.
-Mas eu jurava que ele tinha ficado na praia!
-Venha buscar a escova e veja com seus próprios olhos.
-Obrigada!
-Nós é que agradecemos. Só tem uma coisa, vamos ter que lavar o edredon de novo.
-Mas eu recém mandei lavar!
-Isso foi há oito meses e três dias. Ele amarelou, pegou umidade...
-E agora?
-Nós temos uma revolucionária técnica de clareamento feita com produtos importados.
-Quanto custa?
-Não se preocupe que já aceitamos cheque pré.
-Diz logo quanto sai…
-Uma mais duas de trinta.
-Noventa reais para lavar um edredon!
-A senhora disse a mesma coisa da outra vez.
-Que outra vez?
-Bom, nós ligamos ano passado para avisar do edredon. Mais velho que ele aqui só a dona Vera, a passadeira, que tem dois anos de casa.
-Quer dizer que essa é a segunda vez que eu esqueço de buscar?
-E perceba que de lá para cá nós não aumentamos os preços.
-Se eu pagar de novo, esse edredon vai sair o preço de um novo!
-Vale a pena. E tem a escova.
-Está muito caro.
-Então encare os cento e oitenta reais como o aluguel da prateleira onde o seu edredon está morando.
-E se eu não buscar?
-Ele é despejado no caminhão de lixo.
-Vocês não teriam coragem…
-Com monograma e tudo.
-H & D… eu tinha esquecido! O Dani vai me matar!
-Diga que estava caído atrás do armário.
-E os cento e oitenta?
-Diga que foi o preço da escova de tirar bolinha.
-Mais é muito cara!
-Diga que é feita com produtos importados. Sempre funciona.
-Então é mentira?
-A escova sempre funciona! A escova!






19 de set. de 2008

Abriu a caixa de Bis

Abriu a caixa de Bis e agora quero ver você comer um só. Não adianta descobrir como a caixa foi parar na sua frente, muito menos culpar alguém. Caixas foram feitas para serem abertas, é isso. Vai ver ela estava em cima da mesa há dias ou meses. Você é que só pensava em maçãs e nem lembrava mais do efeito que o cacau tem quando atinge a corrente sanguínea.
Um chocolatinho pode. Não pode?
O fato é que a caixa está na sua frente, abertinha da silva, e vai ser difícil resistir. Seus dedos mal conseguem se segurar. Em bom português, a dieta foi para o saco. Vinte chocolates – muito mais objetivos que você – aguardam a hora de pularem para dentro da sua boca e se derreterem todinhos. Simples assim. Uma espécie de suicídio coletivo por uma boa causa: a sua. É tudo uma questão de tempo. Esqueça a balança e a dieta imposta. Ou esqueça logo do dia em que você provou chocolate.
Enquanto a caixa de Bis estava fechada, existia o controle da situação. Melhor se ela estivesse a salvo na prateleira do supermercado – e um supermercado em um bairro afastado da cidade – mas já conversamos sobre isso nos parágrafos anteriores.
Apesar de saber que chocolates são por princípio uma tentação, antes havia uma barreira física e intransponível: o plástico da embalagem. Um plástico fininho, eu sei. Facilmente rasgado por dente, tesoura, faca e ainda por cima com aquela convidativa cordinha vermelha para puxar. Mas existia uma barreira. Graças a esse fino agrupamento de polímeros, as tentações de cacau se mantinham em um universo paralelo, inclusive isoladas acusticamente. Elas podiam gritar “estou aqui! estou aqui!” que você não ouvia nada.
Até que abriu a caixa de Bis. E deu vontade de comer tudo. Um atrás do outro. E lamber os dedos. E sujar a boca. Reconheça: você sempre gostou de Bis. De fazer com a embalagem aquele joguinho de come-não-come. De amassar os papeizinhos. De contar quantos ainda faltam para atacar. De brincar com a caixa depois. Agora vai resistir de que jeito?
Ainda é possível comer um só. No máximo dois. Quem sabe três. Numa visão otimista, por mais que três chocolates sejam devorados com papel e tudo, se você fechar a boca agora os outros dezessete serão poupados. Praticamente a caixa fica intacta. Dá até para colocar o plástico de novo no lugar e colar com durex. Mas, minha amiga, você vai ter que pegar o que sobrou e esconder bem longe dos seus olhos. No armário mais alto da casa. Atrás das roupas de inverno e das fotos amareladas.
Impossível. Abriu a caixa de Bis. O chocolate está novinho, faz croc quando morde e deixa um gostinho tão bom na boca. Antigamente era só Bis de chocolate preto. Para complicar, agora tem de chocolate branco, morango, laranja. Melhor comer tudo de uma vez e acabar logo com o assunto. Ou então se segurar, deixar a caixa dentro da gaveta mais próxima e comer aos pouquinhos, um a um, para aproveitar cada caloria ingerida.
Mais uma crônica que virou anúncio. A tal da cumplicidade. Ou traduzindo: eu em cada linha, anos e anos de amor e ódio com o espelho.

Mulher é tudo igual. Adora espelhos.

Sabe por que nós temos essa atração por espelhos?
Porque é uma relação olho no olho – e isso mexe com uma mulher.
É tanta cumplicidade que chega a dar ciúmes: a gente se olha na intimidade do quarto, na sala dos outros, na rua, no meio do trabalho e nem precisa falar.
Mulheres não vivem sem espelhos e a recíproca é verdadeira.
Eles são confiáveis, elegantes e discretos. A alça do sutiã está aparecendo? Marcou a calcinha? Pode deixar que um espelho vai deixar você ficar sabendo.
Alguns são verdadeiros gentleman: abrem as portas do carro e cedem o retrovisor para você se olhar. Um bom espelho diz a palavra certa na hora certa. Se você quer elogios localizados, ele mostra um cílio bem maquiado. Se você quer elogios rasgados, ele pede para você dar uma voltinha e massageia sua auto-estima de cima a baixo.
Tem mulheres que preferem o espelho estilo paixão antiga, que está sempre dentro da bolsa e por dentro de tudo. Tem mulheres que não resistem a um espelho estilo amor à primeira vista - aquele que surge do nada, na fachada de um prédio. Outras sonham com o espelho estilo beijo roubado, que faz a gente ficar na pontinha dos pés para conseguir se ver melhor.
Numa coisa as mulheres concordam: espelho nunca é demais. O segredo dessa química? Ficar juntinho de segunda a sexta, um espelho de teto no sábado e cada um no seu canto aos domingos.

18 de set. de 2008

Persiana

O erro foi baixar a persiana. Se a claridade estivesse presente, não ia deixar aquilo acontecer. Não às três horas de um domingo de sol,depois de uma semana de chuva. O que era para ser um minuto de silêncio em homenagem ao cansaço, virou um cerimonial em grande estilo.
A cabeça encostou no travesseiro e os primeiros a pegar no sono foram os fios de cabelo. Os olhos focaram um bichinho caminhando no teto, desfocaram, focaram, desfocaram até que não viram mais nada. Ficaram sem saber se aquilo era uma mosquinha ou uma sujeira que sobreviveu à faxina.
A essa altura, os ossos já roncavam. O pé ainda acordado roçou no outro, pedindo uma meia quentinha. Ficaram os dois do jeito que estavam porque as mãos, que poderiam gentilmente fazer esse favor, estavam incomunicáveis embaixo do travesseiro. Os joelhos se espreguiçaram e convidaram as pernas a fazer o mesmo. Os braços se mexiam e falavam dormindo. O último a se entregar foi o ombro, que finalmente virou para o lado e levou todo o corpo junto.
Pensando bem, o erro foi colocar o pijama. A roupa não ficaria amassada, mas o mesmo não se podia dizer das bochechas. Cada milímetro da pele mimetizado com a fronha. Nem a campainha mais insistente do mundo, nem mesmo as ambulâncias com suas sirenes desbocadas, nem o mais barulhento dos vizinhos, nem um pesadelo intrometido, nada conseguiria impedir um pijama de dormir com sua respectiva dona.
Quem sabe o erro também tenha sido tirar a colcha da cama e entrar para baixo dos lençóis. O cérebro não conseguia registrar um rápido cochilo quando todo o meio ambiente evocava o sono profundo. Se os bebês podiam dormir às 3 horas da tarde, por que ela não? O colchão de molas parecia um grande berço que embalava para lá e para cá. O silêncio cantava baixinho nana-nenê.
O fato é que ela dormiu e sonhou. De lembrar do sonho. De babar no travesseiro. De acordar desorientada, sem saber se era dia ou noite. De sentir a boca seca e se confundir mais ainda. De não saber se levantava ou já ficava por ali mesmo. De pensar em ligar a TV e apagar de novo. De acordar uma hora depois e dizer para o corpo “levanta e anda” e ele fingir que estava dormindo.O sol se foi. O cansaço, também. E a persiana só levantou no outro dia.

16 de set. de 2008

Túnel do Tempo 2 - jornal Zero Hora


Foi o que o piloto disse. Menos cinco, num inglês de-alto-falante totalmente compreensível. E disse em Celsius! Mariana enroscou a manta no pescoço e sorriu. Como era bom fugir do calorão de Porto Alegre, que ultimamente não dava trégua. Nove horas de vôo depois, lá estava a civilização climática. Os malas que levantassem correndo para abrir os compartimentos superiores. Ela não tinha pressa de sair do avião, queria se preparar melhor para receber o frio. Enquanto mulheres da econômica passavam a mão nas nécessaires desprezadas pela primeira classe, Mariana fechava os olhos e cantava “Menos Cinco, Menos Cinco” com a melodia de New York, New York.
A viagem mal tinha começado e ela já podia comemorar. Conseguiu sentir gosto na comida. Viu um filme que havia perdido no cinema. Fez uma king size de pobre com as duas poltronas vazias ao seu lado e dormiu quase toda a viagem. Agora o piloto confirmava suas expectativas: manta, touca, luva, meia-calça, segunda pele, blusão de Gramado, casacão de pura lã. Para a felicidade ser completa, só faltava encontrar uma Nova Iorque branquinha de sales.
Mais uma vez, Mariana conferiru se estava com tudo: passaporte, visto, voucher do hotel, verdinhas (como se elas pudessem voar de sua cintura), passagem de volta, formulário preenchido. Mas como era meio obsessiva, conferiu tudo de novo: passaporte, visto, voucher do hotel, verdinhas (como se elas pudessem voar de sua cintura), passagem de volta, formulário preenchido. Sim, sim, tudo ok.
Do outro lado do mundo, ficaram as roupas de verão, o ar-cndicionado do trabalho que nunca dava conta, uma piscina cheia, uma praia lotada e – ah não! – a tabelinha de conversão de Fahrenheit para Celsius. Como uma gaúcha ia comemorar cada minuto longe do calorão sem a tabelinha?
Seus amigos diziam que a temperatura é como o dólar, melhor não converter. Mariana deveria pensar no termômetro local. Ninguém estava pedindo para ela comer manteiga de amendoim e bacon duplo no café da manhã. Fahrenheit ou Celsius, fazia frio de rachar.
Falar é fácil. Para curtir o inverno em pleno verão, ela precisava saber a temperatura em Porto Alegre. Nem guaraná diet fazia tanta falta naquele momento. Mariana andava pela Quinta Avenida procurando um relógio da Ativa. Ou então, um alto-falante imaginário onde pudesse ouvir a voz daquele piloto recitando um poema em Celsius. Fahrenheit lembrava cálculo, regra de três, onças, libras, galões e sua incapacidade com conversões em geral.
Os dias se foram, as verdinhas também. Mariana comprou casacos lindos, talvez quentes demais. Culpa do preços incríveis e da péssima tática de converter hot chocolate para caipirinha. Ela comia bagels tostados e raciocinava em Chicabon. Ligava o chuveiro do hotel e pensava na ducha Corona da praia. A sombra do Fahrenheit a perseguiu o tempo todo como um maldito fiscal da imigração.Dentro da Macy´s, Mariana ficou sabendo por outro turista brasileiro que aquele verão já era consagrado o mais quente da década. Na última noite, ela sonhou em inglês. Por azar acordou no exato momento em que um vendedor da Gap – casado com uma brasileiro – ia ensinar para ela um truquezinho superfácil de fazer a conversão.

15 de set. de 2008

Figuração... Ação! parte 4

Eu sempre quis fazer cinema. Mais especificamente, fazer figuração num filme de catástrofe onde uma multidão de habitantes vaga desorientada pelas ruas de uma cidade vazia e tomada pelo caos.
Acho lindo aquele balé do horror, especialmente quando Hollywood não economiza na locação e manda a fila seguir desolada por uma estrada sem fim. Adoro observar os olhares atônitos, os passos cambaleantes, as roupas esfarrapadas e imagino a força sobrenatural que esses coitados fazem para descobrir qual é o próximo passo. Literalmente. Caminhar para o Norte? Seguir em direção ao Sul? Almoçar em que horário?
Sempre me perguntei como o diretor consegue coordenar esse bando de gente. Não deve ser mérito do megafone. Nem dos assistentes, que provavelmente vão estar ainda mais perdidos no set. Então cheguei à conclusão de que, se é para ser caótico, o diretor finge que dirige e os 2 mil figurantes fingem que obedecem. Já que o clima é de fim de mundo, o instinto vai falar mais alto e cada um vai cuidar da sua vida – ou o que resta dela.
Foi assim que eu vislumbrei um novo mercado de atuação: o da figurante-líder.
Se um exército de zumbis mutantes estivesse no seu calcanhar, você não gostaria de encontrar alguém que corresse na frente e apontasse “é por aqui”? Se um vírus letal contaminasse todo o ar do planeta, você não adoraria achar alguém que tivesse uma máscara extra de oxigênio – outro dia eu conto dos souvenirs roubados dos aviões nas filmagens da Varig, Varig, Varig.
Com minha vasta experiência na publicidade, eu poderia ser essa líder. Deve ser por isso que emocionei vendo Ensaio Sobre a Cegueira. Com o perdão do trocadilho, enxerguei tantas possibilidades de atuação. Olhando (desculpe) sob a ótica (ai) da figuração, faltou foco (putz). Na cena do supermercado, por exemplo. Eu poderia ter ajudado aqueles mortos de fome a saquearem com mais veracidade as prateleiras. Por que ninguém procurou comida no depósito lá embaixo? Falta de visão (última vez) dos figurantes! E no começo do filme, na cena do engarrafamento? Eu, que atravessei tantas ruas e abri tantas portas em comerciais de carro, poderia teria ajudado a compor o caos urbano. E o que eu vi (sorry) em cena? Uma figuração conformada demais. Nem vou comentar a falta de uma líder nas cenas da quarentena. Se não fosse a Julianne Moore, a figuração estaria perdida. Minha cabeça fervilha. Preciso usar todos esses insights, nem que seja num comercial de catarata ou glaucoma. Vou ligar para a agência de modelos agora mesmo. Topo até dilatar a pupila.
(continua - tá acompanhando a saga da figurante Maria?)

Grávidos de uma avenca

A mulher foi direto ao ponto.
-Não tem planta em casa por quê?
-Falta de hábito.
-Ou de cuidado. Vi a quantidade de vasos abandonados na garagem – parece um cemitério.
-A senhora espionou nossa garagem?
-Vocês sofrem de infertilidade botânica.
-Imagina! Nós guardamos os vasos para um dia…
-… ter outra planta para renegar. Conheço bem o tipo.
-Como a senhora pode dizer uma coisa dessas?
-Vocês nem se deram ao trabalho de remover a terra mofada nas bordas dos vasos.
-Foi o Luis.
-É, mas não fui eu que afoguei uma samambaia quando era pequena.
-Sinto muito. O casal não está preparado.
-Nunca vi uma floricultura que não quer vender.
-O nosso slogan é claro: “se você tem o dedo verde, nós temos a folhagem!”
-Vocês são muito estranhos, isso sim.
-Eu chamaria de compromisso com a fotossíntese. Por isso visitamos as casas dos nossos futuros clientes.
-Ia ficar tão bonito um vaso na sala.
-Luis!
-Típico casal moderno. Acham que flor é quadro de parede.
-É bem mais barato.
-Luis!
-Foi você que falou, Ana. “Com o que custa essa tela dá para botar planta até no banheiro.”
-Uma planta indefesa no vapor do banheiro? A própria câmara de gás, seus nazistas.
-Viu, Ana? Eu falei para não escolher floricultura pelo guia telefônico.
-Eu queria tanto ver crescer uma plantinha.
-Quem sabe a gente compra outro peixe.
-Luis, eu adubo o meu útero se precisar.
-Se vocês quiserem muito, mas muito mesmo, só tem um jeito.
-Qual?
-Fazer o cursinho preparatório “Grávidos de uma avenca”.
-Não vai dizer que vou ter que trocar fralda de planta?
-Luis!
-E por que avenca? Não pode ser Comigo-ninguém-pode?
-Vocês vão aprender a diferença dos adubos, a mexer com a terra e a conversar com as plantas.
-Ih, a Ana vai tontear as coitadas.
-Chega, Luis. Essa casa está muito triste sem um verde.
E estava mesmo.
O casal frequentou as aulas, conheceu adubos e tipos de folhagens, treinou a molhar com regador e a colocar cascalhos embaixo do vaso para uma perfeita drenagem da água. Quando os dois se sentiram prontos, mandaram pintar um dos vasos da garagem. No dia da formatura, voltaram para casa com uma avenca recém-plantada.
Deviam ter matriculado também o cachorro. Um dia depois de terminar o curso, Brutus voltou da clínica veterinária. Comeu a planta. Revirou toda a terra no chão. Quebrou o vaso. Quase engoliu as pedrinhas decorativas. Luis e Ana só não se livraram do Brutus pela descarga, como fizeram com o peixe, para não gastar com encanador. Mas a pobre da avenca estava fadada a morrer de qualquer jeito. O vaso foi colocado por descuido no canto da sacada onde mais batia sol. Sol de torrar. E onde ventava muito. Ventania, pra dizer a verdade. Brutus fez até um favor para a planta.

11 de set. de 2008

Reciclagem

Ela sabia que, mais cedo ou mais tarde, isso iria acontecer. A imobiliária mandou uma carta multando seu apartamento. De todos os moradores do prédio, Marina era a única que não fazia coleta seletiva. E foram os próprios vizinhos que a deduraram. Como explicar para um bando de solteiros que crianças em idade escolar são caminhões coletores de lixo seco?
Era garrafa plástica e lata de leite em pó para criar instrumento musical. Era bandeja de isopor e pote de iogurte para fazer a réplica da Praça da Matriz - isso quando os primos não pediam socorro para construir o cais do porto. Se Marina enfileirasse todos os rolos de papel higiênico e de toalha de papel que separava num ano letivo, daria para fazer três voltas no quarteirão. Fora as caixas de ovos, de leite, de sucrilho, de sabonete, de gelatina, de remédio. Nem os arquitetos faziam tantas maquetes quanto os alunos hoje em dia. Até vasculhar o lixo seco alheio Marina já teve que fazer por causa de uma professora que pediu sucata de véspera e o estoque estava a zero (a única caixa disponível era de KY, não dava pra mandar).
E assim surgia um círculo vicioso. Quanto mais embalagens Marina juntava, mais o colégio pedia. A saída era mobilizar a família inteira colocando até os avós no tráfico de lixo seco. E mesmo depois de despachar uma remessa, seu cérebro continuava mandando mensagens: junte sucata, muita sucata, sucata, sucata.
Nos supermercados, se tivesse que escolher entre uma embalagem sem graça e uma com alto poder de mutação, Marina levava a segunda. Enquanto pessoas normais procuravam as ofertas, ela vasculhava os recicláveis. Nos restaurantes, não saía sem arrecadar tampinhas de garrafa e anéis de latinhas pelas mesas. Nas praças de alimentação, dava vontade de levar uma daquelas latas grandonas de aço com portinha e tudo dentro (tá bom, ela chegou a abordar uma tia da limpeza, que logo chamou o segurança).
Cada vez que achava nas agendas dos filhos um bilhete solicitando encarecidamente sucata, Marina se sentia tirando o sustento de uma família de papeleiros. Se não colaborava com o colégio, falhava como mãe. Se não ajudava os pobres, falhava como cidadã.
A multa da imobiliária foi a gota d’agua. Ia mudar de edifício. Ia trocar os filhos de colégio. Ia arrecadar assinaturas de outras mães que não suportavam mais catar lixo. Então Marina se deu conta: elas, as mulheres com dinheiro, estavam virando papeleiras de luxo. A ironia do sistema capitalista!
Talvez se explicasse seu dilema para os vizinhos solteiros, eles poderiam se comover e pedir o cancelamento da multa. Ou ceder embalagens de pasta de dente. Marina estava pensando em qual apartamento bater primeiro quando encontrou ouro puro. Alguém tinha acabado de comprar uma impressora e não quis a caixa (como não?!). Nem o isopor, nem o plástico de bolinhas. A caixa era tão grande que podia virar uma Fundação Iberê Camargo. Claro que foi direto para o porta-malas do carro. Era início de mês, trabalhadores com dinheiro no bolso, varejo aquecido. Na volta, Marina subiu pelas escadas e foi parando de andar em andar para ver se não arrecadava mais nada no meio do caminho.

10 de set. de 2008

Forno e Fogão

Claudia tinha doces lembranças da infância. A cassata de bombons da mãe, o bolo de laranja da vó, o doce de abóbora da tia, o pudim de leite condensado que ela comia na casa da melhor amiga. Eram doces feitos com amor e esperados ansiosamente por semanas ou meses até que fossem preparados novamente, como se espera alguém querido chegar de viagem. Claudia sentia mais afeto por alguns desses doces do que por muitos familiares que ficavam amargos com o passar do tempo.
E também existiam as doces lembranças. O bife à milanesa da mãe que ninguém preparava igual, a pizza de sardinha com massa caseira feita quando as visitas ficavam para o jantar, a clássica salada de frango dos aniversários – o que era ficar um ano mais velha perto de sentir aquela delícia desmanchando na boca?
Mas isso eram lembranças. As dela. Agora Claudia também era mãe e só entrava na cozinha para apagar a luz quando alguém esquecia. Para não exagerar, ela apertava os botões do microondas. Especialmente o de descongelar. As mulheres de hoje têm a desculpa perfeita para não cozinhar. Trabalham fora. Estudam. Pagam contas. Precisam ler e descansar. Já que o século é outro, Claudia podia encher a boca e assumir que não gostava de ir para a cozinha – ninguém seria louco de contestar.
Mas um dia ela olhou para os filhos e se deu conta de que eles não teriam aquele tipo de lembrança. A infância com gosto de panqueca, a adolescência com a descoberta do Rei Alberto. Todas as crianças devem chupar bico, dizem os médicos. E todas as crianças deveriam lembrar de alguma comida feita pela mãe, dizia sua consciência pesada. Ela, tão moderna, engatinhava na cozinha. Que legado gastronômico deixaria para seus filhos? Um álbum com suas telentregas preferidas? Será que não dava para voltar atrás nos seus ideais de vida e aprender um prato especial? Somente um, para não traumatizar ninguém. Claudia não queria que seus filhos enchessem os olhos de lágrimas ao contar para os netos: “ninguém descascava uma maçã como a minha mãe!” ”Eu abro esse pacote de bolinho pronto bem do jeito que ela fazia!” Essas lembranças não emocionavam nem dono de supermercado.
Claudia resolveu agir. Não estava preparada psicologicamente para procurar seus livros de receita, se é que lembrava onde os guardou. Abriu a geladeira como quem abre o capô do carro e ficou olhando a fumaça que saía lá de dentro. O que fazer agora? Gelo tinha. Ovos também. Um pouco de queijo. O presunto estava passado. Quem sabe se ela aproveitasse aquele resto de azeitonas e o que sobrou da telentrega do almoço e criasse A Omelete da Mamãe? A única, a inigualável omelete mutante, resultado da combinação perfeita de sobras aparentemente incompatíveis. A Omelete da Mamãe tentaria inutilmente ser copiada por gerações. Jamais alguém conseguiria lembrar das quantidades e dos ingredientes exatos. “O que mais ela botava nessa coisa?”, todos se perguntariam.
A Omelete da Mamãe não passou de uma boa intenção porque os dois ovos que estavam na geladeira deveriam estar no lixo. Os restos do almoço foram esquentados com uma camada de queijo ralado por cima, para disfarçar. Mas em compensação, Claudia iria surpreender a todos quando colocasse na mesa Os Palitos de Orégano da Mamãe! Os únicos, os inigualáveis pedaços de pão cortados em formato palito, devidamente salpicados de orégano e azeite de oliva extra virgem, levados ao forno na temperatura ideal. Os Palitos de Orégano da Mamãe - nem tão crocantes, nem tão torrados - seriam lembrados por toda a eternidade ou enquanto ela não aprendesse alguma receita mais marcante.
Claudia queimou os dedos e serviu Os palitos de Orégano da Mamãe na sua travessa inox mais bonita, aquela que ela não via desde a festa do casamento. Foi quando o filho caçula fez um pequeno comentário:
-Tá viajando, mãe? Odeio orégano!

9 de set. de 2008

O cofrinho

João olhou para o lado e não deu tempo de virar a cara. De uma hora para outra, sem poder evitar, viu o que não queria: o cofrinho do Tulio.
Justo o cofrinho do seu parceiro dos madrugadões no trabalho. O Tulio das idas na padaria. O Tulio que inventou dar nota para os peitos das estagiárias. O Tulio que descobria os melhores sites de sacanagem. O Tulio que emprestava ticket-restaurante quando os do João já tinham acabado.
Será que a amizade deles ia continuar a mesma? João fez que não viu mas o Tulio viu que ele viu. Ficou vermelho, tentou puxar a calça, não conseguiu. Levantou e foi tomar água. Um homem não precisa passar por esse tipo de constrangimento. Se fosse o cofrinho da Deise (peitos 7,5) que sempre vem com aquelas calças gostosas de cintura baixa, tudo bem. Mas cofrinho peludo era nojento. E, para piorar, o Tulio sentava embaixo de uma lâmpada fluorescente que iluminava até a marca da cueca.
Nunca mais João ia esquecer aquela visão do inferno. O cofrinho do Tulio! Eles não precisavam ter tanta intimidade assim. Por que o outro não sentava direito? Por que bunda de homem tem que ter espinha?
Tulio voltou com a água, se puxando todo. Quase deu um encontrão na Vanessa (peito esquerdo 9,1/peito direito 9,9). Cabeça baixa, fingindo que nada aconteceu. João também disfarçou porque não queria perder o amigo. E onde ele ia encontrar um goleiro tão bom?
-O ar-condicionado…
-Hã?
Não adiantou. João olhava para o Tulio e via um cofrinho gigante e peludo falando com ele.
-Não tá dando conta do calor.
-É.
Se os dois fossem mulher, teriam achado graça da situação e pronto. Mas homem não tem jeito para lidar com essas coisas. E agora, como os dois iam ficar pelados no vestiário depois do futebol?
Parece que Tulio leu os seus pensamentos.
-Não vou no jogo, cara.
João achou melhor assim, ter um distanciamento técnico. Depois lembrou do Banha, do Ovo, do Lucio e de todo o time. Também decidiu ir para casa. Se enxergasse outro cofrinho hoje, não ia aguentar.

8 de set. de 2008

Já vai tarde

Mataram a rotina. Um vaso de cristal arremessado por trás, um golpe certeiro na cabeça. O assassinato foi premeditado num entediante almoço de domingo. A família se livrou ao mesmo tempo da rotina e do vaso que ninguém gostava. Como julgar pessoas que agiam em legítima defesa?
A partir daquele momento, nenhum dia seria igual ao outro. As manhãs poderiam começar com o jantar e terminar a noite com o lanche da tarde. Os armários da cozinha guardariam as toalhas de banho. A banheira estava livre para virar estante de livros. Alguém deu idéia de colocar grama na escada. E quem quisesse transformar a sala em quarto ou dormir com a cabeça nos pés da cama não precisava explicar por quê.
A ordem era esquecer a rotina, usar a louça de festa em dia comum e acender o abajur quando ainda não precisava. Se quisessem tomar sopa com garfo, bom para eles. Se inventassem de pendurar um quadro na geladeira ou de ter um sapo de estimação, nada contra. Só não podiam comer carne de panela toda terça-feira. Nem fazer o mesmo caminho para o trabalho, nem viajar para os mesmos lugares, nem ficar nos mesmos hotéis, nem tirar as mesmas fotos, nem cortar o cabelo do mesmo jeito, nem contar as mesmas piadas, nem usar as mesmas desculpas, nem repetir tantas frases iguais.
Com o tempo, mais combinações foram feitas. Naquela casa, os aniversários seriam comemorados em outros dias. E não valia cantar de novo o Parabéns. Quem sabe o Jingle Bells, talvez o hino do Brasil para variar. Bandeirinhas de São João poderiam ser hasteadas no teto – estava todo mundo cansado de encher balão. No meio da mesa, bolo de carne com velinhas. Ou torta de ervilha. Senão, uma mesa reservada em um restaurante que ninguém conhecia. De convidados, os estranhos da mesa ao lado. Mas poderiam também ser os velhos conhecidos com presentes novos. Um pé de pato para nadar na serra. Um aquário para o gato. Um poema escrito em papel de presente. Um brinquedo de criança para quem virou adulto demais.
Depois que todos enlouqueceram tudo, a casa ficou parecida com um circo. O marido achava que era a mulher, a mulher não achava mais seus brincos. Os filhos queriam ver um pouco de TV, aquela coisa comum de apertar o botão e trocar o canal. Então a família percebeu que estava com saudade da rotina. Até porque dormir com cobertor no verão e ventilador no inverno não era tão divertido assim. Sem falar que os sonhos mudavam tanto que a cabeça já não descansava. Então num almoço de domingo, o pai olhou para a lasanha de frutas, voltou a sentar na cabeceira da mesa e quis comer franguinho com polenta. Aquele. Já do vaso de cristal ninguém sentiu falta.
Agora a família faz assim: comprou uma balança para equilibrar a rotina e a novidade. Ela ressuscitou e voltou a morar com eles, mas só durante a semana. Quando chega o sábado, faz sua malinha e some. Vai ver a rotina também enjoa das mesmas caras de sempre.

A falta que ele faz

Como assim, estragou a máquina do café?!
(pausa para respirar fundo e os batimentos voltarem ao normal)
Não pode ser verdade. Você tem absoluta certeza do que está falando?
MÁQUINA DE CAFÉ IMPOSSIBILITADA DE OPERAR MOMENTANEAMENTE SUAS FUNÇÕES.
Defina momentaneamente. Isso não é notícia que se dê assim, por e-mail. Tem que reunir todos os funcionários, preparar o terreno e, somente depois dos paramédicos chegarem ao local, comunicar a perda.
A colega de trabalho que leva essa empresa nas costas não pode nos deixar na mão.
Cadê o filtro? Por que não mentiram, não inventaram uma desculpa qualquer? Sou capaz de me oferecer para ler o manual de instruções da máquina para restabelecer a normalidade coorporativa.
Como assim, não conseguem achar nem o manual, nem o técnico?!
(nova pausa para mentalizar um bosque florido, passarinhos ou qualquer coisa que acalme)
Não deu certo. Imaginei gotas de orvalho, que me fizeram pensar em três gotinhas de adoçante mergulhadas num líquido negro, fumegante e divino.
Tem uma mulher passando mal nesse parágrafo. Alguém me ajude, por favor. Traga uma colherinha para eu morder, só não traga café de térmica porque não é a mesma coisa. Diga que o copo de plástico subiu no telhado, invente que a seca arruinou a colheita do café em toda a América Latina. Mas escolha bem as palavras para não acabar desse jeito com o meu dia.
Preciso ganhar tempo para entender a gravidade da situação. Na verdade, preciso de um expresso duplo e amargo. O técnico já deve estar a caminho, melhor pensar assim. Se eu não estivesse com as mãos e as pernas trêmulas, poderia levantar e descobrir.
E agora? Quem vai me acompanhar a tantas reuniões e anotar tudo? Quem vai me acelerar de hora em hora? Chá é coisa de estagiário. Preciso da experiência contida na cafeína para trabalhar. Nos fins de semana e feriados eu sobrevivo, mas durante o horário comercial é humanamente impossível. O grão de café é o exemplo de alguém que veio de baixo, foi torrado por certas pessoas e mesmo assim subiu na vida. Quando ele consegue entrar no organograma de uma máquina dessas, é automaticamente promovido. E um dia alcançará os prestigiados cargos de Cappuccino e Moccaccino.
Mas essa pequena aula de coffee management não muda em nada o problema atual: a máquina do café está estragada. Os e-mails não lidos aumentam. O jornal segue fechado. E eu já estou escalando as divisórias.
Analisando o fato de um ângulo irritantemente positivo, talvez seja um aviso para eu deixar de ser anti-social e conhecer os colegas das empresas vizinhas. São cinco andares e tantos crachás desconhecidos. É só bater na porta, me apresentar com um sorriso simpático, levar um buquê de clips que eu mesma fiz, estender a mão e educadamente aceitar um cafezinho de boas vindas.
Ouvi o barulho do técnico-motoqueiro estacionando lá embaixo. Ou é o primeiro sinal de uma crise de abstinência? Falando nisso, alguém sabe imitar o barulho da máquina do café? Eu me sentiria mais calma ouvindo aquele delicioso trrrrrrrrrrrrr bruuuuuu ãããããúuu, seguido do solene bip que finaliza o processo e ativa a mais sonolenta das glândulas degustativas. Apito de chaleira não serve. Por favor, não insista.
Perdoe se não sheufgts consigo digitar direito. Meus dedos ainda não compreenderam que estamos sem cafeína e seguem arqueados, segurando um copo de plástico imaginário. A sensação é tão real que sinto o calor do café queimando a mão. Enquanto isso, penso em alguma maneira de aumentar o nível de cafeína no sangue.
Pesquisar no Google não é uma boa idéia. Foram encontradas 14.500.000 páginas sobre café, o que só aumenta a minha vontade. Beber água (aqueles famosos dois litros diários) também não resolve. Só se fosse uma água pretinha, quentinha e docinha. Hummmm. Chego a sentir o aroma do café invadindo a sala e a minha corrente sanguínea.
Melhor mudar de assunto. Será que chove hoje?
Como assim, tá chovendo tanto que o técnico não tem como chegar aqui?! (pausa para trincar meus dentes de tanto ranger e estourar minhas mandíbulas)

5 de set. de 2008

Entre aspas

Anselmo reuniu os funcionários e avisou que a partir daquele momento estava terminantemente proibido falar com aspas no horário comercial.
Alguém perguntou como se falava com aspas e ele quase fez o odiado gesto para demonstrar. Respirou e parou a tempo.
Se eles quisessem enfatizar uma palavra, que enfatizassem com a voz, com a cabeça, com o nariz. Tudo menos abrir os braços e desenhar com dois dedos de cada mão as infames aspas no ar.
Na visão de Anselmo, uma pessoa que fala com aspas é irônica. Mais que irônica, irritante. Irritantemente redundante. E presunçosa: já parte do pressuposto que ninguém vai captar a mensagem e utiliza o recurso das aspas como um "entendeu" subentendido.
- E no papel, pode?
Anselmo quase se traiu fazendo as aspas aéreas para mandar o engraçadinho tomar "naquele lugar".
Essa é a questão.
Aspas no papel são inofensivas, explicou com as mãos no bolso. Ninguém lê uma palavra entre aspas e sente vontade de escrever algo entre aspas também.
Já as aspas feitas com os dedos das mãos são uma verdadeira praga. O movimento sincronizado dos quatro dedos juntos e inclinados no mesmo ângulo contagiam. Mais cedo ou mais tarde, os outros acabam repetindo o gesto sem se dar conta.
-E em casa, pode?
Como é difícil estabelecer métodos de trabalho, pensou Anselmo. O que ele estava pedindo não era tão complicado assim. Era um favor a todos e principalmente à língua portuguesa. O simples fato de não poder utilizar o cacoete das aspas estimularia cada um a se libertar, buscar novos adjetivos e expressões, enriquecendo o vocabulário. Sem mencionar o colorido na voz, obtido graças ao emprego de variadas entonações.A partir de agora, naquela empresa somente aspas escritas. Podia ser pior, disse Anselmo para descontrair o ambiente. Qualquer hora dessas, ele contava do seu ódio por pessoas que falam com reticências.

4 de set. de 2008

Revista Claudia Bebê 2007

O bebê finalmente dormiu. Eu também já estaria roncando, de roupa e tudo, se uma boca não viesse em minha direção. E ela não está sozinha. Junto se aproximam uma língua mal intencionada e duas mãos com os dedos abertos em forma de garra implorando por algum contato físico que lembre vagamente sexo.
Desde que o bebê nasceu, minha libido arrumou as malas e saiu de férias sem data para voltar. Minhas lingeries viraram um bando de rendas enciumadas que não aceitam ficar na gaveta enquanto eu peço ajuda a esse prático sutiã brancão que abre duas basculantes na frente, facilitando a vida para que meus seios saltem de três em três horas. Por uma ironia do destino esses mesmos seios, agora fartos e provocantes, são meros produtores de leite.
A boca do meu marido avança sugestiva em direção à minha nuca. Isso sempre funcionou, eu sei. Talvez eu tenha dado uma impressão errada até o sexto mês da gravidez, quando a bagunça hormonal me transformou numa tarada querendo sexo quase todos os dias.
Já passa da meia-noite, se tudo der certo tenho três horas até que o bebê acorde para a primeira mamada. Enquanto meu marido sussurra coisas provocantes no meu ouvido, eu me pergunto: como posso entrar no clima sem um vinhozinho na corrente sanguínea? Com o cabelo horrível desse jeito, o rosto sem maquiagem, a pele sem perfume. E, o que é pior, com a babá eletrônica ligada no volume máximo?
Desde o dia em que a ginecologista liberou geral, foi uma tentativa frustrada atrás da outra. Nosso bebê parece que não quer um irmãozinho tão cedo. Tem fome, manha, sono e faz de mim o que quer. É um desgaste, mas ao mesmo tempo me sinto a pessoa mais importante do mundo. As mães de primeira viagem mereciam uma hola de um estádio lotado cada vez que conseguem acalmar um bebê com cólica. Passo o dia ao seu redor trocando fralda, beijando seu pezinho, catalogando os tipos de choros – tudo isso é tão novo para mim. E, desculpe a franqueza, sexo conheço bem, já tive bastante nessa vida.
Sei que homem precisa de contato físico maior do que um braço roçando para alcançar a chupeta que caiu embaixo do sofá. Imagino que meu marido não se contente em me ver nua naquela fração de segundos quando entro ou saio do chuveiro. Se ao menos fosse época de Copa do Mundo e a TV o entretesse um pouquinho.
Acho que o corte da cesárea (por que tem que ser tão feio e grande?) marcou para sempre a minha personalidade. Esses dias tive uma idéia para um projeto de lei ou algo assim. A licença-maternidade poderia ter uma cláusula facultativa onde a recém-mãe se ausentaria das funções sexuais (sem dar maiores explicações) até o momento em que se sentisse mulher de novo - sexy, sensual, poderosa, sem barriga, o corte já cicatrizado e imperceptível, pronta para voltar para o trabalho e para a cama.
Quem sabe numa das tantas acordadas no meio da noite, após eu ter dado o peito direito, depois o peito esquerdo, e novamente o direito e o esquerdo, uma rapidinha não caia bem? Mas antes preciso me preparar psicologicamente para desligar a babá eletrônica e estar de corpo presente.
Ele não parece comovido com minhas olheiras e deita em cima de mim. Um papai-mamãe-filhinho-no-quarto-ao-lado??? Isso pode ser mais ousado que uma orgia com anões bezuntados. E se o bebê tiver uma apnéia enquanto eu gozo? Se ele entender o que está acontecendo e perder a voz para sempre? Se é que eu já não traumatizei o feto durante aquele surto de sexo nos primeiros meses, talvez ele compreenda que papai-mamãe precisam mais do que chocalhos coloridos para se divertir.
Minha irmã, guerreira mãe de gêmeos, diz que o jeito é relaxar e gozar. Desde que se tranque a porta do quarto antes. E na dúvida alguém levante da cama para conferir. Importante ressaltar que ela fala com autoridade - já foi pega no flagra e teve que explicar por que o papai estava lá embaixo “assoprando sua perereca”. Os dois só voltaram a transar de um jeito mais digno graças ao Rei Leão e à Lilo & Stitch. Hoje os DVDs infantis são comprados praticamente no dia do lançamento, o que faz os gêmeos terem um acervo maior do que muita locadora.
Hummm... deixa eu me concentrar um pouquinho. Parece que existe uma remota possibilidade do meu corpo acordar da hibernação. Ou nem tão remota assim. Olha o tesão tocando a campainha! Pode entrar, seja bem-vindo. E palmas para o meu marido, que sempre foi um cara persistente. Se ele não está ligando para esse cheirinho de leite azedo que já impregnou em mim, não sou eu quem vai ligar.

3 de set. de 2008

Túnel do Tempo - jornal Zero Hora

Entra verão, sai verão, elas se encontram. Mulheres de todas as idades, credos e classes sociais unidas por um ideal: um tecidinho leve e com franjinhas, providencialmente amarrado na cintura.
A Irmandade da Canga começou timidamente com uma veranista que sentiu falta de um algo a mais para se preservar à beira-mar. Intuitivamente, ela amarrou a toalha da mesa ao redor dos quadris e foi para a praia (o que talvez explique as estampas em 98% dos modelos). Graças a Deus a moda pegou, e hoje a Canga é uma conquista feminina, um antitop model com adeptas de Imbé a Jericoacoara, sem citar as ramificações espalhadas po todo o litoral brasileiro.
Não pense que usar Canga é demodê. Seu comprimento varia de ano para ano, acompanhando as tendências das passarelas internacionais. E se você prestar atenção, vai perceber que a Canga evoluiu muito. Atravessou dunas de areia e abriu caminho para o vestidinho, a sainha, o shortinho e outros inhos que ainda virão. Até a indústria do crochê foi revitalizada, criando novos empregos.
Marina Salgado, presidente da Irmandade da Canga, afirma que por mais que as mulheres criem variações sobre o mesmo tema, a Canga clássica sempre vai ter o seu lugar ao sol.
-É como o disco de vinil, que sobreviveu ao CD e hoje é cultuado por DJs e colecionadores.
Cacá, pertencente à ala mais radical da Irmandade, diz que a sua Canga é uma tatuagem de Henna, pois permanece no corpo durante o verão e sai depois.
-Nada como entrar no mar e sentir a Canga molhando e grudando nas coxas, as franjas fazendo aquela cosquinha gostosa (eu avisei que ela era da ala radical).
A Canga encoraja as mulheres a ir mais longe na caminhada à beira-mar, sem medo de encontrar conhecidos ou colegas de trabalho.
-É impressionante como um pedaço de pano pode dar tanta autoconfiança e liberdade às mulheres - diz Rodolfo Sardenha, psicólogo em férias.
Como gueixas que vestem seus quimonos para seduzir, a Irmandade da Canga se cobre e vai à praia, chocando a modernidade sarada. Com suas Cangas amarradas na cintura, as mulheres dizem sim, eu faltei à academia, não é da sua conta.
Adri, que veraneia em Floripa e trabalha no ramo de hortifrutigranjeiros durante o ano, entrou para a Irmandade mês passado.
-Qual é o problema se as mulheres querem cobrir suas casquinhas de laranja ou suas frondosas laranjeiras?
A Irmandade da Canga tem um sonho. Um dia ela quer conquistar o planeta, nem que seja o Planeta Atlântida. E quem sabe, num futuro distante, as mulheres normais possam ligar a televisão e ver as concorrentes do Miss Universo desfilando de Canga.

2 de set. de 2008

Figuração... Ação! parte 3

Não sinto minhas pernas. Se não fosse o maldito interfone tocando na cozinha, eu ficaria deitada o resto do dia. Preciso sair da cama, rastejar até o banheiro e alcançar a gavetinha dos antinflamatórios - mas de que jeito? As coxas e panturrilhas estão inutilizadas, os joelhos não respondem, os pés talvez estejam deformados para sempre. Como os figurantes deficientes atuam em um nicho muito específico da publicidade, provavelmente vou passar fome.
O último set foi um massacre. Um comercial de carro com três diárias e uma figuração de cinquenta loucos atravessando a rua sem parar. Por que não concentraram a filmagem no luxo do banco de couro e no porta-malas, que era bem espaçoso? Quanta lata gasta à toa. Negativos que dariam para impulsionar o cinema nacional foram desperdiçados sem piedade.
O diretor era gringo, então só quem tinha passado do basic three conseguia entender o que ele dizia. Trouxe na mala sua assistente, uma nipônica com forte sotaque alemão que dava satisfações apenas para o cliente. Na figuração chegava uma versão mal traduzida, como se tivesse um cabeção na nossa frente tapando parte das legendas. Tentei pegar o plano de filmagens com o pessoal do figurino mas não consegui. Medo de espionagem, cópias numeradas e registradas em cartório. Será que eu estava perdendo dinheiro e não sabia? Alguém roubava roteiros para vender aos concorrentes?
Pelo que entendi, observando a linguagem universal dos palavrões, o diretor não estava encontrando o timing perfeito para a travessia da rua. Queria que os figurantes posicionados do lado esquerdo da calçada fossem ao encontro dos figurantes do lado direito. O problema é que sua assistente era canhota e, inconscientemente, invertia tudo. E o gringo ficava cada vez mais vermelho de raiva. Gritou tanto que alguns colegas pularam o cordão de isolamento, se misturaram com os curiosos e sumiram, sobrecarregando os sobreviventes da figuração.
Acho que foi nessa hora que senti a primeira cãimbra. Uma fisgada descomunal subiu pelo calcanhar, passou pela meia-perna depilada, cruzou a coxa já cabeluda e atingiu em cheio a mata atlântica, 45 dias atrás denominada virilha. Ainda bem que não tinha médico no set, senão eu ia passar vergonha. A partir daquele momento, gemi baixinho e tentei disfarçar a dor jogando meu peso para a outra perna. Não que eu pese tanto assim, mas piorou. As cãimbras vieram em bando, fazendo eu caminhar como um espantalho e passar a falta idéia de que estava debochando da narrativa. Logo eu, que levo tão a sério minha profissão.
Preciso levantar. O interfone parou de tocar ou meus ouvidos também se entregaram? Sigo sem condições de puxar o lençol, o que dirá ir até o banheiro.Vou mentalizar o antinflamatório e salivar bastante para engolir o comprimido. Amanhã tem outra filmagem - desde que não seja alguma propaganda de maratona, eu dou um jeito.
(continua)

Belezinha

Sem querer, eu comecei a campanha pela beleza real bem antes que a Dove. Pelo menos lá em casa. Como sou um pedacinho de progesterona cercada de testosterona por todos os lados, decidi resumir os meus cuidados estéticos com a seguinte explicação:
-Tô fazendo belezinha...
Sempre invejei aquelas matérias das revistas que mostram como é fácil tirar um sábado inteiro para fazer o dia da beleza. Se nunca consegui fazer belezão, então adotei as belezinhas. Fazer belezinha é real, possível e saudável. Um minutinho pra ajeitar melhor o cabelo. Cinco minutinhos pra tirar a maquiagem antes de dormir. Um hidratantezinho depois do banho. Um risquinho preto no olho pra não sair com cara de louca. Um protetorzinho solar dentro da bolsa. São doses homeopáticas de vaidade. Uma manutenção diária e preventiva, mas é o que dá para fazer no meio de tanto trabalho.
Tô fazendo belezinha é uma frase genérica que serve para várias situações. Até para quando eu não estou fazendo nada, só quero um minuto de paz no silêncio do banheiro. Para que confundir a cabeça deles com as diferenças entre esfoliante e tonificante? Para que entrar em detalhes sobre a ação vulcânica da cera quente sobre os poros? Melhor não aprofundar o assunto, senão eles vão querer saber por que fico procurando cabelo em ovo se acabei de voltar da depilação. Para que levantar a questão do auto-flagelo a que a gente se submete com pinças e alicates? Eles podem se dar conta de que não sou tão evoluída assim, já que minhas sobrancelhas seguem crescendo feito primatas na selva.
Prefiro que o subconsciente dos meus filhos registre como o ideal de mulher alguém que se cuida e se gosta. Na medida do possível. E que eles se sintam no direito de responder com a mesma frase se no futuro eu abrir a porta do quarto e pegar um deles fazendo belezinha com as namoradas.
Se você é como eu, que corre de salto pra lá e pra cá e almoça corrigindo tema de casa, experimente fazer uma belezinha - com ou sem Dove. A gente vai aprendendo truques como manter um perfume extra no porta-luvas e ter o celular da manicure pra avisar que já, já você está chegando.
Fazer belezinha: uma campanha pelas mulheres reais, por causa dessa loucura surreal em que a gente se meteu. Eu recomendo.