24 de nov. de 2008

A Dieta do Cartão

Chega um dia na vida de uma mulher em que ela pára na frente do espelho, olha o jeans novo, a blusa nova, o sapato novo, o colar novo e vê que não dá mais. Definitivamente, não dá mais para comprar tanto.
É o que aconteceu com Marina. Ela está linda. Já o seu cartão de crédito ficou estufado, inchado, roliço, quase explodindo. A fatura vai vir com papadas de papel. Talvez até o carteiro se negue a entregar por excesso de peso.
Marina sofre. Ela sabe que precisa tomar uma atitude drástica: cortar vitrines e tirar do seu cardápio os creminhos, batons, brincos e bolsas consumidos sem motivo aparente. Melhor nem esperar a segunda-feira para começar a Dieta do Cartão. De agora em diante, só uma folhinha de cheque por semana e um magro dinheirinho na carteira para as necessidades vitais. Marina andava assinando seu nome sem sentir o gosto das compras, já salivando pelo próximo vestido. Agora vai ter que se reeducar. E aprender a contar moedinhas como quem conta calorias. Para quem cresceu fazendo dieta, é mais fácil mudar hábitos econômicos usando a experiência adquirida. Marina vai sofrer nos primeiros meses, vai ter que recusar convites para ir no shopping, vai ter crises de abstinência só de pensar em vitrines e certamente vai assaltar um balaio de ofertas no meio da noite. Depois vai se sentir melhor. E assim que os resultados começarem a aparecer, ela vai poder soltar o cinto e ver que ele não está tão fora de moda assim. Se uma mulher consegue sobreviver sem carboidratos, tudo é possível. Marina já passou meses longe de pão e quase virou uma proteína de salto alto. Já fez a Dieta do Abacaxi, a Dieta de Beverly Hills, a Dieta das Cores, a Dieta da Ophra. Mas sua preferida sempre foi a Dieta dos Números: dois pares de sapato em três vezes, oito regatas na liquidação, cinco lingeries em uma mais duas, um par de brincos novo uma vez por semana.
Na Dieta do Cartão, o jeito é fechar a carteira e se deliciar com as compras dos outros. Sim, é permitido curtir as últimas aquisições da melhor amiga desde que não se caia em tentação.
Marina, você consegue. Só não experimente nada.
Outro segredo de qualquer dieta é o exercício. Deu vontade de comprar? Então mexa-se. Marina abre gavetas e portas, empurra para lá e para cá os cabides, cruza e descruza os braços tentando achar algo semi-novo, sobe em um banco para alcançar o que tem esquecido na parte de cima do armário. Customizar peças que não se usa faz tempo é um grande truque para acalmar os impulsos consumistas.
Com o passar dos dias, Marina vai descobrir que os armários dilatam como os estômagos. Se ela parar de colocar coisas novas dentro, ele volta ao tamanho normal e ela não vai sentir tanta fome de compra. Pendurar o extrato do cartão na porta do armário também é uma dica excelente. Se o valor do extrato for bem polpudo e repugnante, vai ter o mesmo impacto de colocar uma foto gorda da Marina porta da geladeira. Isso se ela fosse gorda, mas não. Tem um corpinho lindo e tudo que veste fica bonito. O que é uma bela desculpa para comprar o que vê pela frente.
E não é que a crise de abstinência veio mais cedo que o esperado? Nesse momento Marina treme só de se imaginar chegando em casa cheia de sacolas. Nos seus devaneios mentais, vira tudo em cima da cama e fica ali saboreando cada peça nova. Suas mãos suam frio ao lembrar do delicioso ato de tirar as etiquetas de preço – ela pode até ouvir o barulhinho do tag de plástico arrebentando e libertando a saia do R$ 59,90.
Pobre Marina, que saliva pensando numa meia nova. A embalagem de plástico que abre tão convidativa, a tesourinha para cortar aquele ponto de linha que une os dois pés da meia, mais uma etiqueta de preço para arrebentar. Hummm... Marina comeria um código de barras inteirinho agora.
É só dar tempo ao tempo. Ela vai conseguir perder uns quilinhos de contas e se sentir mais leve. É só ter persistência e disciplina. A Dieta do Cartão funciona até para a mulher mais consumista. Marina, onde você vai? Não, não! Volte aqui, Marina. Você recém tomou café da manhã. O shopping nem abriu ainda!

14 de nov. de 2008

Terminações nervosas

Querida Anete, lembra quando rimei joanete com Anete e você morreu de rir? Isso foi há tanto tempo. Acho que nunca contei que essa rima não veio assim, do nada. Treinei muito na frente do espelho. Sou um cara ruim de improvisos. Cotonete, colchonete, mobilete, patinete. Uma semana sem conseguir achar novas palavras. Daí veio o joanete. Sabia que você ia achar graça. O mesmo não aconteceria se eu falasse em Bernardete e Margarete, as outras rimas que o Luisão sugeriu – coitado, ele só estava tentando ajudar.
Naquela noite, o meu joanete e a sua risada me deram coragem. Passei o braço por trás do encosto do sofá e rimei queijo com beijo. Você ia dizer algo como “ai que amor!” e minha boca chegou primeiro. Se eu fechar os olhos agora, vejo tudo isso acontecendo de novo, como num filme. Sinto até o seu gosto: morango recém tirado da geladeira. Sorte que você estava sem batom na hora.
Até hoje não sei se tocou a campainha da porta ou se foi dentro da minha cabeça. Eu ouvia coisas enquanto descobria o gosto da tua língua, o lisinho dos teus dentes. Beijei você daquele jeito porque não sabia o que fazer depois. Pegar o controle remoto e trocar o canal da TV não dava. Fingir que estava com vontade de ir no banheiro, também não.
Então preferi beijar até ficar sem fôlego. Eu sempre fazia isso dentro da piscina (trancar a respiração, não beijar). Naquele momento, a casa podia ser invadida por alienígenas canibais. Meu único medo era prender a língua no seu aparelho ou abrir os olhos e ver sua cara de decepção.
Mas não. Você disse alguma coisa que eu não entendi e me beijou de novo. Quando seus pais chegaram do supermercado, acho que estava escrito na nossa testa que a gente tinha se beijado. Sem falar no monte de almofadas espalhadas pelo chão. O beijo começou no joanete e quase terminou nas suas coxas, nas suas costas, na sua barriga macia.
Não sei por que estou lembrando disso agora. Não param de vir cenas na minha cabeça, de repente virei um flash back humano. Vejo a nossa viagem pra Noronha (e pra Madri, naquele albergue onde roubaram os nossos únicos pares de tênis), eu te ensinando a dirigir no chevetinho azul emprestado do meu primo, o dia em que você pintou o cabelo de ruiva só porque eu contei que tinha tara por ruivas, a vez em que nós dois nos encontramos sem querer no centro, a cama que a gente quebrou na casa da praia.
Anete, não vai embora desse jeito. Deixa eu pensar em outras rimas, deixa eu ir atrás de um dicionário com vinte mil palavras que terminem em ETE. Você riu do joanete, eu posso ser um cara engraçado de novo. Anete, dá para mim uma segunda chance. E uso calça cigarrette. Faço frete e teste para chacrete. Eu viro teu marionete. Esqueço o basquete. Aprendo a fazer omelete. Baixo o meu topete. Só não posso rimar meus dias com noites vazias.

13 de nov. de 2008

Confissões

-Eu minto, padre.
-Mas nem entrei no confessionário ainda…
-Desculpe, é que mentir está me atormentando.
-Que tipo de mentiras?
-Minto para os meus filhos que eu passo fio dental.
-Só isso?
-Só?! A mesma mentira noite após noite? Cheguei a fazer o cálculo, se eu viver até os 90 anos e repetir essa mentira diariamente são 5 anos de mentira na minha vida!
-Eu quis dizer que, num mundo com tanto ódio e guerras, usar fio dental não é tão grave assim.
-Uma mãe que mente para os próprios filhos é gravíssimo! Eu devia dar o exemplo. Já nem consigo me olhar no espelho quando entro no banheiro…
-Então por que a senhora mente para eles?
-Com todo o respeito, se o senhor tivesse filhos ia ver o que é bom.
-A maternidade é um presente sagrado.
-E um presente sagrado fica gritando e testando os limites da gente?
-Imagino que a senhora deva fazer muitas coisas boas para compensar…
-Sim, claro… Parar no sinal vermelho e não estacionar em fila dupla contam?
-Eu diria que é sua obrigação.
-Tá vendo? Minto até para padre! Eu parei em fila dupla na frente da igreja.
-Que outros pecados abalam sua consciência?
-Minto para os meus filhos que eu comia salada na idade deles. Minto que eu via pouca televisão e dormia cedo. Minto que eu tomava remédio sem reclamar. Viu, o fio dental não é nada.
-A senhora não é uma mentirosa. É só uma peregrina cruzando o árduo caminho da educação. Alguém já disse que…
-Que ser mãe é padecer no paraíso?
-Deixe o paraíso de fora. Alguém já disse que ser mãe é dureza.
-Eu preciso de ajuda, padre!
-O que a senhora precisa é começar a usar fio dental na frente dos seus filhos.
-Eu odeio fio dental. Não dá para rezar e pronto?
-E tem mais: sua penitência vai ser comer salada, ver pouca TV, dormir cedo e tomar remédio sem reclamar.
-Que saco!
-Respeito, por favor, estamos dentro de uma igreja.
-Desculpa. Amém.
-Amém, não. Amendoim. Tem um no seu dente.
-Perdão, padre!
-Vamos parar com a confissão por aqui.
-O senhor não vai me dar perdão?
-Melhor dar o fio dental da sacristia… acabo de ver uma casca de pinhão entre os seus dentes.

11 de nov. de 2008

Churrasco

-Olha que beleza!
Antônio veio da churrasqueira mostrando o espeto de picanha como se fosse um troféu. A carne parecia mesmo uma delícia, tostadinha por fora e provavelmente vermelha por dentro, como anunciava o sangue pingando no chão.
-Que cabeça, esqueci de bater o sal…
E lá se foi ele com sua picanha de volta, fazendo outra trilha. Olhando para o chão, dava para adivinhar todo o trajeto do assador nas últimas duas horas. Manchas pretas de carvão quando ele foi colocar o saco vazio no lixo, gotas de água depois que lavou os espetos, migalhas de pão com alho por tudo.
-Gente, essa picanha está se desmanchando de tão macia!
Desde que decidiu fazer um churrasco para receber os tios de Minas que viriam passar alguns dias em Porto Alegre, Antônio só pensava nas providências a tomar. Calculou e recalculou a quantidade de carne por pessoa. Se perguntou mil vezes se comprava salsichão de frango ou de porco, se fazia cebola no espeto, se não era demais coração de galinha, se usava sal grosso com ou sem tempero.
A sua tia só gostaria de fazer uma pergunta. E fez, apesar dos olhares que o tio Adão lançava sempre que queria evitar assuntos polêmicos.
-Toninho, por que na sacada?
-Por que o quê, tia Rosa?
-A churrasqueira. Na sacada.
Que pergunta, pensou Antônio. Podia ser estranho para um mineiro, mas para um gaúcho era perguntar porque o sol é redondo.
-Vocês não comem churrasco em churrascaria?
-Claro que sim. Mas aqui todo mundo tem sacada com churrasqueira.
-Se não tivesse a churrasqueira, cabia até um sofá na sacada.
Tio Adão levantou. Para ver se mudava o rumo da conversa, foi mexer nos espetos.
-Essa picanha sai ou não sai, gente?
-Tia Rosa, gaúcho que é gaúcho tem sacada com churrasqueira.
-O certo não é fazer churrasco no chão, como eles fazem no interior?
Antônio bateu o sal da picanha. Sua vontade era enfiar o espeto na garganta da tia.
-E como tem vento nessa sacada! Enche a sala de fumaça…
Tio Pedro não sabia onde se meter. Antônio já nem disfarçava a raiva. O churrasco estava pronto há horas e ele continuava afiando o facão.
-Rosa, quer fazer o favor de ficar quieta? Olha que vista linda!
-Por acaso não posso achar estranho churrasco de sacada?
-Rosa…
-Adão, você mesmo viu. Tem churrascaria em cada esquina!
Depois que os ânimos se acalmaram, todos sentaram na mesa. Para se desculpar, tia Rosa pegou o maior pedaço de carne. A cebola, o salsichão, a salada, o coração, ela nem tocou.
-Toninho, tem arroz?
-Arroz?
-Uai… não se come churrasco com arroz?
Da próxima vez, Antônio jurou que ia servir pão de queijo congelado para aquela gente.

10 de nov. de 2008

Aos Doze

-Mãe, quero tirar o bigode.
Olhei para os dois agrupamentos de penugem entre o nariz e a boca do meu filho. Depois olhei para o visor do meu celular, procurando data e hora para registrar imediatamente aquilo no cérebro - pasta momentos inesquecíveis de mãe.
Analisando friamente a questão, ele passou o ano dando indícios de que não era mais o menininho de sempre. Começou a ir a festas no clube. A usar desodorante. A pedir privacidade. A fechar a porta do banheiro. Sem falar nos outros bigodinhos que apareceram pelo corpo. E dos copos derrubados. E dos abraços de cão São Bernardo, que quase me tiram do chão. E do tênis número quarenta que ele comprou semana passada. Eu ainda podia sentir um cheirinho de pomada de assadura pela casa. E de lencinho umedecido. Danoninho. Tip-top azedinho de leite. Bigode de gatinho desenhado pela profe da escolinha.
-Ouviu, mãe? Quero tirar o bigode.
Péssima hora para devaneios uterinos.Tinha uma boca rosada, carnuda e com um projeto de bigode esperando minha resposta. Gilete ou barbeador? Com a mão direita eu raspo o guri e com a esquerda eu tiro foto? Com ou sem flash? Azuleno pra acalmar a pele ou anestesia local pra acalmar a mãe?
-O pai disse que tirando com pinça não nasce mais.
Peloamordedeus, não era a melhor hora para eu explicar os princípios básicos da depilação para os dois. Ou melhor, para os três, porque meu filho caçula estava ligadíssimo em tudo, já procurando o seu bigode no espelho.
Nem preciso dizer que a família inteira foi para o banheiro. Após uma breve discussão sobre dor e folículos capilares, optamos pela maquininha de aparar cabelo. Rápida e indolor, como pedia a situação. Ainda tive o senso de humor de só tirar um dos lados do bigode pra gente dar risada. Depois passei a maquininha pro pai da criança concluir o serviço. E não é que o ex-bigodudo ficou ainda mais lindo?
Nove de novembro de 2008. Um domingo que poderia ter sido igual aos outros, mas entrou para a história. A essa altura, nas camadas mais profundas da epiderme, os hormônios do meu filho estão tramando as próximas surpresas. Podia ser pior. Ele poderia ter dito que queria camisinha.

Orgulho da mãe

Para a dona Clotilde, o mundo se dividia entre as pessoas que viam novela e as que ainda iam ver. Sábia mulher. Para quem duvidasse, ela tinha um exemplo dentro de casa. A filha Jane, que sempre se recusou a permanecer no mesmo recinto que um galã e uma protagonista.
Sangue do seu sangue, aquela garota não podia ser imune a uma boa trama. Nascida em uma família que se orgulhava de ter cedido a calçada da frente para a gravação da primeira cena de beijo do então desconhecido Tony Ramos, Jane precisava gostar de novelas. Era o que todos esperavam dela. Seu nome foi escolhido em homenagem a Janete Clair, ícone do diálogo bem-construído.
Só para implicar, na hora da novela Jane ia dormir, ler, falar no telefone, lavar louça, tomar banho, fazer qualquer coisa que não tivesse uma música-tema ao fundo. Dona Clotilde, que achava chato ver novela sozinha, apelava: contava mais uma vez das terríveis dores que sentiu no seu parto. E, nem que fosse por consideração, pedia que a filha sentasse ao seu lado no sofá. Com ar de superioridade, Jane dizia que não ia dar os melhores anos da sua vida ao Projac.
-Depois da novela eu te deserdo, menina!
-Depois da novela! A senhora só sabe dizer isso!
Dona Clotilde aumentou o volume e, feito a pior vilã da teledramaturgia brasileira, rogou uma praga para a própria filha: “um dia essa daí vai viver nas novelas.”
No dia seguinte, Jane acordou estranha. Só falava frases feitas. Suas roupas, seu quarto, tudo estava diferente. Bem ou mal, tinha um Porsche conversível estacionado na garagem. Aquilo podia ser delírio de fome, quem mandou dormir de barriga vazia? Foi para a cozinha e a mesa estava posta para o café da manhã, com um empregado de cada lado. Mordeu o pãozinho e ele era de resina. A geléia também! Tudo ali era falso. Para completar, ela ouvia sempre a mesma música irritante, sem saber de onde vinha. Jane saiu correndo para a rua, entrou no carro e podia jurar que estava sendo seguida por uma câmera. O mais estranho é que alguém gritou “silêncio, gravando!”.
Às vinte horas e cinquenta minutos, dona Clotilde ligou a TV e não acreditou quando viu a filha dentro da novela. Reconheceu o corte de cabelo, as roupas, o cenário: sua Jane fazia parte do núcleo rico!
-Filha, tá me ouvindo?
-Eu não mereço o Jorge Augusto, mami.
-Você nunca me chamou de mami. E quem é esse Jorge Augusto?
-Sei lá, mandaram eu dizer isso. Com tom de voz emocionado. Você não acompanha essa babozeira!?
Dona Clotilde buscou o jornal do dia e abriu rápido na página com o resumo das novelas. O capítulo de hoje estava imperdível. Sua Jane iria atropelar Pedro Miguel e conhecer o médico Jorge Augusto a caminho do hospital, por quem se apaixonaria perdidamente. Se tudo desse certo, eles tinham grandes chances de terminar a novela juntos.
-Janinha, esquece o beijo técnico! Vai com tudo, minha filha!

7 de nov. de 2008

Bom dia só se for pra você

No mundo idealizado por Rosaura, o Teleprompter seria adaptado para qualquer situação em que ela precisasse falar por mais de um minuto, a bancada seria alta o suficiente para tapar o terrível terninho que a obrigavam a vestir e as câmeras não teriam luzes vermelhas atraindo seu olhar. Ou melhor: as câmeras seriam proibidas de funcionar antes das 10 da manhã.
Se você não entendeu, eu explico: Rosaura é uma promissora e revoltada apresentadora de telejornal. Promissora porque ela tem jeito para a coisa e revoltada porque o telejornal entra no ar das 06:15 às 06:22. Quem em sã consciência quer ver Rosaura tão cedo? Nem seus pais, ela desconfia. A maquiagem feita com cuidado não disfarça suas gigantescas olheiras – duas manchas roxas carinhosamente apelidadas de Tim e Maia.
Para entrar tão cedo no lar dos telespectadores, por sete miseráveis minutos, Rosaura precisa sair da sua casa às cinco horas. E acordar antes das quatro. E dormir antes das dez. E não ter vida social. E desgraçadamente perder o sono na mesma hora aos domingos.
Agora você entende por que aquilo aconteceu? Foram as circunstâncias. Rosaura cochilou ao vivo, em rede nacional de televisão. O homem da previsão do tempo tinha acabado de comentar sobre a frente fria que vinha da Argentina e a câmera voltou para Rosaura. No exato momento em que seus olhos pesaram como duas bolas de ferro. A cabeça despencou na bancada. A caneta voou longe. Rosaura não chegou a babar porque cortaram a imagem antes. Mas o técnico de som não foi tão rápido e deixou o ronco captado pelo microfone de lapela ir para o ar por quatro desconcertantes segundos, junto com o logotipo do telejornal.
Na faculdade, o professor de Jornalismo I deveria ter advertido: se um dia vocês conseguirem a tão sonhada vaga numa bancada de telejornal, mesmo que seja num horário infame, nunca durmam no ar. Lavem o rosto, aumentem o tom de voz, caminhem pelo cenário, finjam que estão sendo atacados por um mosquito e dêem tapas no próprio rosto. Improvisem. Não durmam jamais.
Agora Rosaura espera a repercussão do incidente. Já são quatro da tarde e ninguém telefonou comentando. Ninguém! A audiência do programa não precisava ser baixa desse jeito. Seus pais poderiam ter ligado. E ligado outra vez, fazendo voz diferente. A tia Carmem também poderia ter se manifestado. Ela jurou que assiste o programa todos os dias. Se amanhã de manhã Rosaura ainda tiver o emprego, vai pedir desculpas no ar. Ou então deixar um travesseiro por perto.

4 de nov. de 2008

Herança

Naquela noite, a escada não rangeu em sinal de respeito. Estavam todos ali, a ala do contra de pé e os puxa-sacos sentados. As crianças ficaram atrás da porta, esperando para ouvir cada detalhe.
O advogado foi o último a chegar. Entrou solene, cumprimentou a família com um aceno de cabeça e fez o sinal da cruz quando passou pelo porta-retrato da falecida. Depois sentou na cabeceira da mesa e tirou um papel da sua maleta de couro.
-Vou pular aquele bla-bla-blá inicial, se vocês permitem. E já aviso que não tem reclamação. A velha registrou tudo direitinho, mudou o texto cinco vezes. O que ela decidiu está decidido. Quem é a Geórgia?
-Sou eu!
-Ih, menina. Ela deixou as células adiposas para você.
-Cadela!
-Não seja mal-agradecida. Essas células adiposas estão há gerações na família.
A outra saiu chorando, melhor seria se tivesse saído correndo. Foi para o banheiro vomitar o que tinha no estômago.
-Cadê o Arnaldo?
-Eu.
-Nada pessoal, mas se fosse eu marcava urgente um eletro de esforço. A falecida deixou para você as artérias entupidas.
Uma risadinha abafada veio do fundo da sala. O advogado se virou e encarou o cabeludo.
-Você deve ser o Leonardo.
-Eu mesmo.
-Aproveite essa peruca farta. Você herdou a calvície.
-Não pode!
-Está no seu DNA. Perda prematura dos folículos capilares. Eu já vejo as entradas dizimando esse cabelão.
E assim, contra a vontade de todos, o testamento distribuiu a herança genética igualmente. A artrose, a miopia, o gênio difícil, o dedão do pé virado para fora, o nariz-batata, a mordida cruzada, a enxaqueca crônica, o sopro no coração, a estatura abaixo da média.
-E os olhos azuis, ficaram pra quem?
-A pele boa?
-Os dentes fortes?
-A pernas sem varizes?
O advogado se retirou do recinto. Ainda estava para nascer quem ia herdar ouro puro.

3 de nov. de 2008

Buzina da vida

Olha que ironia. Para renovar sua carteira de motorista, forçaram Alice a estacionar em local proibido: uma sala de aula apertada com trinta adultos com cara de criança que aprontou no trânsito.
Alice não tinha multas e manejava muito bem a embreagem em aclives. Até sua foto na carteira antiga não era das piores. Nem por isso o novo código de trânsito deixou de punir essa exemplar motorista inutilizando horas preciosas da sua vida.
Por três noites de quatro longas horas cada, Alice teria que ficar em fila dupla com estranhos. Ela não sabia se eles também gostavam de cantar dentro do carro, se compravam bergamota na esquina, se passavam cera líquida, se usavam buzina de vaca.
De um lado, novatos que precisavam aprender alguma coisa. De outro, macacos velhos que tiveram suas carteiras apreendidas e não havia escapatória. E no meio a Alice, que podia estar em casa vendo novela. Mas a covarde ficou com medo de fazer a prova e bater de frente com questões de física. Dois corpos não ocupam o mesmo espaço. Correto? E se o espaço fosse a sua cama e os corpos em questão, o de Alice e seu marido?
Quando a aula começou e o ventilador de teto deu a primeira rangida, ela se imaginou subitamente dentro de um porta-malas apertado onde passaria um bom tempo até ser resgatada pelo relógio. Para completar, sentiu uma claustrofobia gramatical: o professor terminava cada frase com a palavra “exatamente”.
Os assuntos variavam. Legislação. Cruzamento perigoso. Neutralização do ponto cego. A regra de olhar para os três retrovisores a cada sete segundos. Mas o que Alice iria lembrar para sempre era a quantidade de vezes que um ser humano consegue repetir a palavra “exatamente”. Sem contar todas as suas variáveis: “Exatamente isso, pessoal”, “Exatamente isso que acontece, pessoal”, “Exatamente essas situações que acontecem, pessoal.” Exatamente esse desespero.
Algumas pessoas faziam piadas das próprias infrações, trocavam endereços de oficinas, pegavam no pé dos políticos. Dois médicos conversavam sobre cuias de chimarrão cravadas no céu da boca dos motoristas mateadores. Ou sua noção de entretenimento estava muito equivocada ou os colegas de aula estavam mesmo se divertindo.
Enquanto o professor falava da necessidade de enxergar os pneus do carro da frente, Alice botou seu cérebro em ponto morto e passou a analisar a calota sem cabelo de um homem. Um, não. Dois, três, quatro, cinco. A calvície masculina aumentava como os buracos nas ruas. Haja asfalto e implante para remendar tudo.
Depois Alice não pensou em mais nada. Precisava concentrar esforços para vencer o sono e não roncar na frente de estranhos. O rangido do ventilador de teto parecia música de ninar. O princípio da direção defensiva era ser mais tolerante (mais?) e antecipar os atos dos outros motoristas. Ah se eles fossem tão previsíveis quanto os exatamentes do professor. Os olhos de Alice agora fechavam em sincronia com os rangidos. Exatamente assim, pessoal.
Pausa para o intervalo com cafezinho morno e bolachas moles. As distrações disponíveis eram 1) esticar as pernas, 2) ficar em pé e se apoiar nas divisórias para ver se alguma caía, 3) encarar a fila do banheiro, 4) interagir com o pessoal, 5) desistir das aulas e dirigir sem carteira.
Alice preferia estar no maior engarrafamento do mundo. Ou bem estacionada no sofá de casa.

31 de out. de 2008

Bocejo

Um bocejo bem dado tem o seu valor. Dependendo da ocasião, pode valer mais que um cochilo no sofá da sala. Ele provoca torpor momentâneo, fecha os nossos olhos e apaga a luz dos pensamentos. Relaxa da ponta do pé ao fio do cabelo. Às vezes parece que vem com travesseiro.
Um bocejo dos bons não escolhe hora nem lugar para dar o ar da graça, apesar de ter uma certa preferência por tardes chuvosas e ambientes corporativos. É o cérebro mandando dizer “chega, deu, vou pra casa”. E, por um momento, os neurônios acreditam.
O bocejo é indiscreto, quase escandaloso. Adora legendar a preguiça com um ahhhhhhhhhh cheio de agás. Se a gente tenta seguir as regras de etiqueta e coloca a mão na frente da boca, ele se esquiva, dá um jeito de sair por entre os dedos. E se apertamos os lábios para segurar, aí mesmo é que ele faz careta.
Deve estar comprovado em alguma comunidade científica que o bocejo tem, sim, vontade própria. E sabe ser persuasivo. Se ele quiser que a gente estique os braços para cima e alongue as costas para os lados, é o que vamos fazer. Se ele decidir ter companhia, outros bocejos serão desencadeados como uma hola de estádio em final de campeonato.
De tão sincero, o bocejo contagia. A outra pessoa é pega de surpresa e quando vê já abriu a boca. Não é que nem o espirro, que sai como um grito. Quem boceja sussurra um poema sem se preocupar com as rimas.
Se fosse uma pessoa, o bocejo seria alguém que vive no mundo da lua, daqueles que não se estressam e não envelhecem tão cedo.
Difícil explicar o que é o bocejo. Um direito adquirido. Uma cama king-size no meio do nada. Um convite irrecusável ao ócio. Um milhão de dedos fazendo massagem nos ombros da gente. Um alerta contra filmes chatos. Uma aula de democracia: ricos e pobres bocejam da mesma forma. O o que muda é o hálito.

P.S.: durante esse texto, o bocejo se pronunciou 27 vezes. Concordou com o raciocínio, corrigiu o português, levantou e foi dormir.

30 de out. de 2008

Até que a morte os separe

A história de amor de Bruno e Catarina começou onde muitas terminam.
-Você vem sempre aqui?
Seria a cantada mais previsível do mundo se eles não estivessem no cemitério. Ela desviou os olhos da lápide e encarou o homem ao seu lado. Ele era bonito. Aquele tipo de beleza cafajeste que tanto atrai e trai as mulheres.
-Estou perdido, não acho a saída.
Quem sabe respondendo logo ele sumiria do mesmo jeito que apareceu.
-Desça a escada no fim do corredor, à direita.
-Desculpe, eu não quis dizer o que você acha que eu quis dizer.
Catarina ficou em silêncio. Voltou a olhar para a foto envelhecida do homem e da mulher abraçados. Com cuidado, ajeitou as rosas vermelhas que decoravam a lápide.
Constrangido por interrompê-la, Bruno tentou ao menos ser gentil.
-Seus pais?
-Não. Eu não conheço os dois.
-Estranho... quer dizer, as rosas vermelhas.
-Fui eu que trouxe as rosas ontem. Não acho estranho. Eles eram um casal. Pela fotografia, apaixonados. Merecem rosas vermelhas e não flores horríveis de defunto.
-Ontem?
-Se você está realmente perdido, venha. Eu mostro a saída.
Catarina saiu caminhando e Bruno foi atrás. Com tantas perguntas na cabeça, ele abriu a boca apenas para dizer o seu nome. E perguntar o dela. Alguns lances de escada depois, contou que veio para se despedir de uma tia. Chegou tarde demais, se perdeu, perdeu o enterro. Mas não era sobre isso que ele queria falar.
-As rosas. Ontem. Hoje. Você vem sempre aqui?
Catarina respondeu que sim, que gostava de ir lá para pensar. Sempre que tinha um problema, e os problemas a perseguiam ultimamente, escolhia uma lápide e ficava horas pensando. Na vida dos outros, na causa da morte, o que tinham deixado para trás, como reagiram os familiares. Um exercício de ficção que geralmente melhorava a sua realidade.
-Olhe a vida que tem nesse lugar. Quantas histórias para contar.
E apontou para duas lápides, uma próxima da outra.
-Prestou atenção nos sobrenomes? Na semelhança das fotos? Pai e filho. O pai pediu para ser enterrado perto do filho, eles sempre pedem. Esperou vinte e quatro anos, compare as datas.
Bruno, cada vez mais curioso, queria saber algo sobre Catarina. Por que ele não encontrava uma mulher dessas na noite, numa festa. Justo no cemitério. Quantos anos ela deveria ter? Era uma mulher bonita, olhos e cabelos profundamente negros, ar triste, pernas que fariam a alegria de alguém. E que profissão ela teria, para estar numa quarta-feira à tarde no cemitério?
Quando ele se deu conta, já estavam na calçada.
-Agora você deve saber o caminho. Tchau.
Bruno ficou parado. Se ela fosse embora a pé, podia oferecer uma carona. Catarina chamou um taxi e entrou. Antes que ele cogitasse a hipótese hollywoodiana de seguir uma mulher que conheceu há 20 minutos, lembrou que seu carro estava estacionado do outro lado do cemitério.
Durante a semana, Bruno pensou em Catarina muitas vezes. Leu obituários de jornais, tentou achar algum pretexto para voltar lá. Idéia absurda, comentaram os colegas num chope de fim de tarde. Absurdo era enxergar o rosto de Catarina em todas as mulheres que cruzavam o seu caminho. A garçonete, mostrou Bruno. Parecia Catarina.
-Você não disse que ela é morena? Essa daí é loira, cara.
Bruno nem ouvia. Fazia planos para o feriado que se aproximava. Finados. Ele ia acampar no cemitério se fosse preciso. Ia fazer plantão um dia antes e um dia depois. Tudo para encontrar mais uma vez Catarina. E a encontrou.
-O cachorrinho tem telefone?
Catarina o olhou de relance, como da primeira vez. Ele sempre dizia a frase menos apropriada ao momento.
-Olha que eu mando o Tom avançar...
-Não é o que você está pensando. Sou veterinário, Catarina. E nunca sei como puxar conversa com você.
-Flores de plástico! Como alguém tem a coragem de plantar flores de plástico numa lápide?
Bruno ficou parado, enquanto ela praguejava os familiares sem coração.
-Eles visitam no primeiro Finados, no segundo aniversário. Depois botam flores de plástico, para não precisar voltar tão cedo.
Aos poucos, Bruno conseguiu mudar de assunto - não muito. Descobriu que Catarina trabalhava numa clínica de quiropraxia. Endireitava colunas, estralava ossos. Ossos que, por mais bem-tratados que fossem, acabavam ali, engavetados. Os que desafiavam o tempo eram tirados dos caixões e colocados em caixas ou sacos de lixo, cedendo espaço para outra pessoa da família.
-Aposto que você visita cemitérios quando viaja.
Catarina já estava na calçada, se despedindo.
-Sim. O da Recoleta é o meu preferido.
E lá se foi Catarina, deixando Bruno mais curioso do que nunca.
Ele mudou o trajeto de casa para passar na frente do cemitério todos os dias. Pensava nela o dia inteiro. Estava obcecado, como diziam os amigos. Apaixonado, como ele dizia para si mesmo.
Numa das idas ao cemitério, Bruno encontrou Catarina. Dessa vez, numa fotografia. Era ela sorrindo. Na lápide, seu nome, a idade, a sacanagem do destino. Olhou a data. Sua morte tinha acontecido dez dias atrás.
Bruno chorou por tudo que não aconteceu entre os dois. Pelas perguntas que ele não fez. Pelo beijo que nunca daria em Catarina. Por tudo que poderia ter começado entre os dois se aquela carona tivesse acontecido. Bruno chorou e sentou no chão. Ia ficar ali, esperando, até que aparecesse alguém da sua quase futura família.

27 de out. de 2008

Revista Claudia Bebê, outubro 2008


Já passei por dois partos, um de cesárea e outro meio-a-meio: senti todas as dores de um parto normal mas terminei na faca. Eu poderia falar das contrações e refletir por que nenhum hospital coloca revistas pra gente se distrair enquanto espera a próxima. Poderia lembrar da experiência gutural de gritar por um homem (no caso, o anestesista). Ou falar da sensação de ser costurada e não ter a chance de escolher a cor da linha.
Em vez disso, vou contar os olhares que mais mexeram comigo e que lembro até hoje. Podem inventar ecografia em 5D. Podem transmitir as imagens lá de dentro num sistema pay-per-view. Mas nada nesse mundo supera aquele momento mágico em que você finalmente olha para o serzinho que acabou de sair da sua barriga e se dá conta de que, apesar de tudo que vocês já passaram juntos, ele é um estranho. Então você analisa o nariz, o queixo - o resto você nem olha mais porque já está hipnotizada. A partir dali, seu olhar vai ser eternamente parcial e apaixonado. Se foi um encontro às escuras planejado pela obstetra e seu marido, nunca deu tão certo.
O outro tipo de olhar que ficou marcado na minha memória não tem nada de poético. Foi logo após o nascimento do meu primeiro filho, quando meu irmão nos visitou na maternidade. Ele babou pelo sobrinho, depois olhou para mim e ingenuamente disse:“ué, achei que a barriga saía.” O que mais doeu foi ele ter falado exatamente o que eu estava pensando. Eu, que li tudo sobre gravidez, também fui ingênua a ponto de me imaginar saindo da maternidade com as roupas e a barriga de antes.
Já explicaram a você por que ela não some depois do parto? Culpa sua. Nove meses alisando, passando óleo de amêndoas, fazendo cafuné, olhando de frente, de lado, de costas, idolatrando, conversando com ela sem parar – a coitada da barriga se apega! Cria vínculo. Acha que é da família. Quer mais, como qualquer criança mimada. E vai ficar mais alguns meses com você só de birra.
Como é praticamente impossível uma grávida não paparicar sua barriga, o mínimo que você pode fazer é ser compreensiva. Por nove meses, você a tratou como filha única de mãe solteira. Mas não se iluda. Foi apenas circunstancial. Nada mudou desde que a primeira mulher das cavernas parou nas margens de um rio, viu sua pança refletida e, chorando, descobriu que carne de tiranossauro era calórica.
Mulheres odeiam barrigas, essa é a verdade. O único momento na vida em que a relação se deturpa é durante a gravidez. Uma avalanche de hormônios circulando pelo corpo cega qualquer mulher. A barriga vira o centro do universo. Enquanto isso, seu umbigo vai se transformando num botão de sofá capitonê.
A sala do parto é o divisor de águas. Aquela afinidade que vocês tinham antes, sinto informar, vai embora com a placenta. Em vez de cafuné, agora você quer estrangular sua barriga com um zíper de cintura alta. Quer torturá-la com a série mais cruel de abdominais. Sorte dela que sua energia está momentaneamente direcionada para intermináveis mamadas, trocas de fralda e noites em claro.
Mais cedo ou (geralmente) mais tarde, a barriga se dá conta de que está sobrando. Numa terapia de regressão ao útero, começa a diminuir. Volta a ter oito meses, depois sete, seis, cinco até sumir por completo – com algumas felizardas, isso acontece.
Depois o filho cresce, a cicatriz fica imperceptível, o umbigo sobrevive e, apesar do biquíni ser um momento difícil, na hora de tirar fotos uma mãe sempre pode puxar os filhos pra bem perto (mais especificamnete, pra frente da sua barriga) e sorrir dignamente.

24 de out. de 2008

Do contra

Litoral. Auge do verão. Três da tarde. João sacode a areia das suas Havaianas, veste a camiseta para cobrir a sunga e entra num tradicional restaurante à beira-mar. Desafiando a moral e os bons costumes praianos, chama o garçom e pede filé com fritas.
O outro faz que não ouve. Coloca o cardápio aberto na sua frente e indica a
casquinha de siri, especialidade da casa.
João sabe que a casquinha deles é famosa, que vem gente da cidade só para comer duas, três, quatro. E ainda levam o que sobrou para casa. Ele não vê graça nenhuma em carne de siri. Para falar a verdade, tem nojo da casquinha reciclada. Devolve o cardápio e repete o pedido: filé com fritas. Mal passado. Quase vivo.
O garçom continua com a caneta aberta, esperando. Oferece Congrio, Merluza,
Peixe Rei, Taínha, Namorado, Linguado. Um filezinho sem espinhas, quem sabe? Faz bem para a saúde. Se ele tiver alguma preferência, é só pedir que o cozinheiro dá um jeito.
Sim, ele tem preferência. O bom e velho filé com fritas. João fica com mais vontade ainda de comer carne sanguinolenta. Não é porque alguém definiu que na beira da praia só se come peixe que ele vai desistir. E por que a implicância com o coitado do boi? Da batata ninguém diz nada.
O garçom não sabe mais o que fazer para dissuadir o cliente. Inconformado, chama o dono do restaurante. João ameaça ir embora. Confusão na mesa quinze. Postas de peixe à doré esfriam nas mesas vizinhas.
Como o cidadão entra num estabelecimento que vende excelentes frutos do mar há 45 anos e pede carne vermelha? A honra do tataravó Euclides, um mago na tarrafa, como é que fica? Sem falar que desse jeito ele tira o ganha-pão de humildes pescadores que todos os dias madrugam e enfrentam os perigos do mar para buscar peixes frescos. Quem sabe ele experimenta uma lula à vinagrete, em homenagem ao presidente? Ou camarão gigante? No bafo? À milanesa também fica uma delícia.
João respira fundo. Pede o cardápio novamente. Mostra que ali dentro está escrito carnes e, embaixo, filé com fritas. Sim, responde o garçom. Filé com fritas, a pé, a cavalo. Mas isso é de praxe, está escrito para encher linguiça. Ninguém come carne vermelha num restaurante especializado em peixes. Não faz sentido. Ele nem lembra quando foi a última vez que um cliente comeu algo que não fosse peixe. Seria como pedir risoto numa pizzaria.Quatro da tarde. Eles vencem, pero nem tanto. João muda o pedido antes que desmaie de fome. Um frango grelhado, pelamordedeus.

22 de out. de 2008

Banquete

Depois de um longo inverno de privações, Mosquito levou a família para comer fora. Os veranistas estavam invadindo o litoral como nuvens de gafanhotos, o que significava uma imensidão de carnes brancas e tenras à livre escolha. Isso era a própria visão do paraíso para quem havia passado os últimos meses se alimentando dos pescadores locais com seus corpos magros, as peles torradas e extremamente salgadas.
Mosquito e sua prole esperaram o sol se pôr e, naquela hora em que todos da sua espécie saem voando e devorando por aí, passearam de rua em rua até decidir onde iriam comer. Os moradores sentados na frente das casas facilitavam as coisas, parecendo menus de restaurantes fixados nas calçadas. Será que os borrachudos e os pernilongos, primos do Mosquito que moravam em outros estados, também tinham tanta fartura?
Uma perna pendurada do lado de fora de uma rede abriu o apetite da Mosquita, que nem estava com tanta fome assim. Nessa mesma casa, crianças corriam soltas pela grama e um bebê dormia no carrinho - sangue puríssimo, um néctar dos deuses. Já que o ambiente parecia limpo e familiar, a decisão estava feita. Humanos, aqui vamos nós.
Mosquito recomendou que os filhos evitassem carnes de pescoço e avisou para que tivessem muito cuidado com os tapas. Conhecidos de outras praias já o preveniram de que os veranistas estavam particularmente violentos nesse ano. E as crianças que não aceitassem nada estranho para cheirar. Se todos se comportassem, poderiam repetir a sobremesa.
Depois, o casal de mosquitos escolheu um recanto mais afastado onde o pessoal jogava cartas e foi para baixo da mesa. Enfim, sós. Ficaram ali conversando. Logo iriam mordiscar um pé ou uma canela. Falaram do futuro, fizeram planos de tentar a vida na cidade antes que os primeiros ventos do inverno soprassem. Quando alguém cruzou uma perna e bateu a fome, Mosquito e Mosquita se serviram de todas as carnes que encontraram. E sentiram nojo. Custava tirar o protetor solar da pele? Gente porca, eu hein.


21 de out. de 2008

Eles e elas

O departamento de Recursos Humanos tinha uma missão: fazer com que os funcionários se sentissem tão à vontade, mas tão à vontade, que fizessem o Número Dois no horário comercial. Mais precisamente, no banheiro do trabalho.
-Por que eles não pedem para a gente lamber a térmica do café?
-Ou arrotar no meio da reunião?
Enquanto algumas pessoas nem haviam digerido a notícia ainda, grandes fóruns de discussão aconteciam na Central do Corredor. Quem já não havia passado pela situação de entrar no banheiro imediatamente após alguém ter poluído o local e levar a culpa? Imagine não poder mais usar a clássica desculpa de “não fui eu, o banheiro já estava assim”? A intimidade versus o constrangimento.
Fazer o Número Dois dentro de um ônibus, numa viagem obscura de oito horas onde ninguém conhecia ninguém era uma coisa. Agora dentro do ambiente de trabalho, na claridade das lâmpadas fluorescentes onde todos todos se chamavam pelos apelidos era caso de calamidade pública. Não haveria gravata ou bico fino que revertessem a situação.
Antes que o convite virasse uma ordem, todos começaram a pensar em soluções mais plausíveis. Nunca mais ingerir alimentos sólidos, por exemplo. Ou fazer o Número Dois só na hora do almoço, em banheiro de shopping e de restaurante. A turma dos radicais queria programar uma constipação coletiva, provocando o uso em massa do plano de saúde e levando a empresa à falência.
O RH, agora carinhosamente apelidado de Recursos Desumanos, ouviu os anseios de cada departamento. Mas foi irredutível.
-O Número Dois agora se faz no trabalho. E parem de chamar cocô de Número Dois!
Para ele, nada demonstrava mais cumplicidade numa relação corporativa do que o empregado realizar seus afazeres intestinais no banheiro do empregador. Na tentativa de criar um clima mais propício, aromatizadores de última geração foram instalados. O genérico de papel higiênico foi substituído por marcas de textura delicada e os funcionários responderam um questionário dizendo se preferiam papel higiênico com perfume ou neutro. O tempo de permanência ficaria a cargo de cada um, desde que ninguém achasse que estava realmente em casa e esquecesse da vida lá dentro.
As situações de crise sempre geram soluções brilhantes. Alguns passaram a usar o banheiro do andar alheio. Outros importaram máscaras do carnaval de Veneza para entrar e sair incólumes. Os práticos fizeram uma vaquinha e compraram revistas comunitárias. Houve quem pedisse para colocar um laptop com internet liberada em cada banheiro. O tempo foi passando e aos poucos todos se acostumaram a fazer o Número Dois entre uma reunião e outra – isso quando não entravam falando no celular e seguiam a conversa lá dentro. Até que um dia o Pedroso do Suporte fez o Número Dois de porta aberta. Não era para ficar à vontade?
A Diretoria deu descarga no pessoal do RH e arrancou as plaquinhas de Eles e Elas. O papel higiênico desapareceu da empresa e os banheiros foram subitamente ocupados por caixas de papel carta, recibos e grampeadores. Nem o Número Dois, nem o Número Um.
Os colegas não sabiam se atiravam o Pedroso no poço do elevador ou se erguiam um busto de clipes em sua homenagem.

15 de out. de 2008

Aqui se faz, aqui se paga

A porta do ônibus abriu e os primeiros passageiros subiram. Duas mulheres e três homens. Nenhum com vetê - os abomináveis vale-transporte. Wanderson era mesmo um cobrador de sorte.
-Um passinho à frente, faz favor!
A frase ecoou dentro do ônibus, totalmente desnecessária. Wanderson não precisava mais pronunciar seu bordão já que agora, trabalhando na madrugada, o ônibus estava sempre vazio. E o que era melhor, os passageiros pagavam em dinheiro. Assim ele podia realizar sua tara mais secreta: dar o troco.
Tá achando estranho? Todas as taras são estranhas. O cara gostava de manipular moedinhas, de fazer múltiplas combinações de centavos e prorrongar ao máximo o momento-êxtase: a entrega do troco nas mãos do passageiro, o ok silencioso e o barulho da catraca despachando o cidadão.
E não era uma tara tão secreta assim. Tomé, o motorista, tinha certeza de que o colega gostava mesmo é de esfregar os dedos na palma da mão alheia. Wanderson nem perdia tempo explicando. O seu negócio era outro, ele gostava de sentir o peso do metal. Se pudesse, queria ser uma máquina de parquímetro para ficar o dia inteiro recebendo moedinhas sem precisar devolver nenhuma.
-Ô, meu! É pra hoje ou pra amanhã? - disse o passageiro na sua frente.
Tomé foi obrigado a estacionar o ônibus. Wanderson estava branco (eu contei que ele era um negão lindo?) e com os olhos parados, um fio de baba escorrendo pelo canto esquerdo da boca. Após levar um tabefe na cara (o motorista sempre quis baixar o sarrafo no tarado), Wanderson voltou a si.
-É... essa... nota... de... vinte... reais... - balbuciou.
-Que foi, nunca viu, mané? - disse o passageiro, sem a menor paciência.
Óbvio que Wanderson já tinha visto notas de vinte reais. E teve que repetir que seu negócio era outro, ele gostava de sentir o peso do metal.
-Ele vai levar todo o meu troco!!!
E levou. Não sobrou uma moedinha na gaveta. O ônibus arrancou e Wanderson ficou ali, amarelo como a cédula de papel que acabara de receber. Como desgraça pouca é bobagem, a próxima da fila pagou a passagem com vetê.
-Aqui se faz, aqui se paga!!! - praguejou o cobrador.
Não deu outra. O tal passageiro desceu duas paradas depois e foi atropelado por um caminhão de telentulho. Morreu na hora. Wanderson correu para socorrer suas adoradas moedinhas, que ainda respiravam no bolso do defunto. E devolveu a nota de vinte. Ele era tarado mas não era louco.

14 de out. de 2008

De bandeja

Devia ser proibido ir direto do trabalho para aniversário de criança. Último dia de trabalho, então, deveria ser considerado crime inafiançável. Prisão Perpétua. Cadeira elétrica com choque duplo nos genitais.
A tristeza de deixar para trás amigos queridos. A saudade antecipada. Os abraços sinceros. A força para não molhar o rímel. As oitos horas mais longas da vida. O e-mail de despedida. O chalalá de partir para novos desafios. E depois aquelas bandejas de docinhos dizendo “vem cá regular a lenta, querida”.
Alguém gentilmente coloca uma bandeja na minha frente, como se percebesse um desejo latente de afogar as mágoas na glicose.
-Agora não, obrigada.
-Come, você está tão branquinha.
Pensando bem, um porre de branquinhos seria perfeito. Segurar o pelotine transparente como quem ergue uma taça de cristal e mandar ver. Para começar, vinte branquinhos um atrás do outro, sem sentir o gosto. Só o açúcar descendo redondo e queimando a garganta. Os granulados fazendo cosquinha e subindo direto para o cérebro. Depois mais vinte brigadeiros para alcançar aquele estado débil-alegre-foda-se. Com tantas crianças gritando e subindo pelas paredes, ninguém vai reparar se eu enrolar a língua na hora do parabéns.
A consciência fala mais alto. Lembro das horas investidas na esteira, do prazer de vestir uma calça muitos números menor e levanto da mesa. Já comi um papaya antes de sair. Vou até a janela tomar ar. Quem sabe um guaraná diet com gelo.
O menino mais suado da festa (talvez do mundo) engole o gás hélio de um balão e fala com voz de pato. Uma risada automática escapa da minha boca – é piada velha, mas relaxa como dedos fortes massageando os ombros numa sessão de shiatsu infantil.
De repente a tensão desaparece. Amanhã é outro dia e outra vida. Converso com as pessoas, passo batom, me ofereço para limpar um nariz ranhento, quase tiro os escarpins e entro na fila da cama elástica. Parabéns para eu mesma, que finalmente consegui relaxar.
Quanto às tentações alimentícias, lembro de um truque testado e aprovado em regimes passados. Imagino que aquelas bombas calóricas são docinhos de plástico. E também os salgadinhos, os cachorrinhos, a torta fria, a mãe do aniversariante. Tudo cenário.
-Aceita um caramelado?
Que sacanagem. Ela deve ter lido meus pensamentos. É como oferecer champanhe a uma pessoa com sede. Aceito, sim. A bandeja inteira. Caramelados são meu ponto fraco. Sento numa mesa do canto e começo com os amarelinhos. Minhas mãos suam de euforia. A calda derrete e gruda nos dedos. Não importa. Um brinde a quem inventou esse Lexotan docinho. Enxergo muitas bandejas de caramelados se multiplicando pelas mesas. Sinto que é hora de abandonar o recinto quando me deparo com um brigadeiro comido pela metade, já melequento na toalha da mesa, e devoro o infeliz. Saio antes de pedir ao menino mais suado da festa um gole de fanta uva.

10 de out. de 2008

Da série "crônicas que viraram anúncio"

Já tem tanta desgraça por aí. Do jeito que a coisa anda, prefiro ser otimista nas pequeníssimas coisas.

Entrei na cozinha e lembrei o que fui buscar lá. Achei o carro no estacionamento do shopping. Liguei para casa e todos estavam bem. Não precisei fazer conta de cabeça nem ler manual de instruções. Liguei o rádio do carro quando estava dando uma música que eu gosto. O vôo não atrasou. Meus órgãos vitais funcionaram conforme o previsto. Abri a porta e o jornal estava me esperando. Acordei com o cabelo bom e com quem eu amo do lado. Não fiquei presa atrás do caminhão de lixo. O soluço parou. O salto do sapato permaneceu intacto. Se é que algum dia vou ter síndrome do pânico, não foi hoje. Entrei no meu jeans recém-lavado. Não recebi ligações de telemarketing. Perdi a parte de trás do brinco e logo encontrei. Causei uma boa impressão em alguém. Não quebrei minha caneca preferida. Na sala de espera, achei uma revista que ainda não tinha lido. O telefone tocou de madrugada e era engano. Tiraram uma foto e eu saí bonita. O fio dental não arrebentou no meio dos dentes. Tomei um copo de água a mais e uma xícara de café a menos. Corri e o joelho não doeu. Escapei da reunião de condomínio. Não faltou luz quando eu estava dentro do elevador. Minha batata frita veio sequinha. Não fui abduzida. Ao longo do dia, parei em quinze sinaleiras e não fui assaltada quinze vezes. As canetas mantiveram uma distância regulamentar da minha camisa branca. Nada caiu da bolsa. Não achei asa de cupim nos móveis. Parou de chover bem na hora em que levei meus filhos no colégio. Passei por alguém que fumava e consegui trancar a respiração a tempo. Cheguei em casa antes de começar a novela. Esqueci de ligar o celular e sobrevivi. Lembrei de me espreguiçar antes de sair da cama e de encolher a barriga antes de entrar na reunião. O pingo de azeite caiu no guardanado de pano. Não fiquei famosa e pude andar tranquila nas ruas. Encontrei uma amiga do colégio e ela estava com mais rugas do que eu. Estacionei entre dois carros de primeira. Passei batom e não fiquei com os dentes sujos. Tive vontade de assaltar um banco mas desisti a tempo. Não precisei cozinhar. Mudei de perfume e perceberam. Almocei com quem eu mais queria. Não me pediram dinheiro emprestado. Recusei uma fatia de torta. Soltei o sutiã sem ninguém ver. Lembrei que faltava queijo antes de chegar no caixa do supermercado. Consegui fazer o DVD funcionar sozinha. Salvei a vida de uma formiga. Nenhuma espinha saiu no meu nariz. Ouvi uma piada boa. Mandaram um beijo para mim. Levei o ferro de passar roupa para consertar e ainda estava na garantia. Fui convidada para ver desenho no sofá. Se alguém falou mal de mim, não fiquei sabendo. Tirei uma felpa sem fazer chorar. Espirrei e disseram saúde. Quis tomar um suco geladinho e tinha. Saí do banho e a toalha estava no seu devido lugar. Do jeito que a coisa anda, ganhei o dia.

9 de out. de 2008

Amor de mãe

A babá demitiu a mãe da criança por justa causa. A mãe não era mais a mesma desde que Isabel nasceu.
No início, chegava pontualmente para conferir se a água do banho estava na temperatura ideal. Comprava sabonete cheiroso e xampu que não ardia os olhos do bebê. Fazia questão de trocar as fraldas sempre que estava em casa, levava ao pediatra, fazia aviãozinho com as últimas colheradas da sopinha.
Depois Isabel foi crescendo, a novidade passou e a mãe começou a se ausentar. A babá avisava que tudo estava pronto para o banho e a mãe não ia conferir a roupa escolhida, nem tirava fotos da menina ensaboada. Ouvia contar que Isabel tinha caído do sofá e não dava um beijo mágico tipo cura-tudo.
A babá não dizia nada. Ficava com o coração cortado, beijava ela mesma o galo na testa da Isabel. Ia nas reuniões com a professora, assinava boletins. A cada dia que passava, percebia que a mãe não respeitava os horários. Saía cedo demais, voltava muito tarde. E tinha que engolir desculpas esfarrapadas como “ganhei dois ingressos de cinema”, “ganhei uma aula grátis na academia”. E a criança, sem ganhar atenção.
Depois que todos iam dormir, a babá corria para o seu quarto minúsculo e conversava com o silêncio: “vou demitir essa relapsa, isso não pode ficar assim”. Onde já se viu uma mãe que não brinca com a criança, que não pergunta se ela comeu bem, se aprendeu passou novos no balé.
A babá sabia que ela mesma era a grande culpada por essa situação. Ela fez vista grossa por muito tempo e, na ausência da mãe, assumiu um filho que não era seu. Confiou que a mãe não ia se atirar nas cordas, que ia viajar menos a trabalho, que ia levar a menina na pracinha nos dias em que estava em casa. A babá tirava folga e, quando voltava, encontrava a criança no mesmo lugar. Com cheiro de mofo. Sem maçãs rosadas no rosto.
Um dia, a babá chamou a mãe para uma conversa séria. “Dona Cássia, há quanto tempo a senhora não pega a Isabel no colo, não diz para essa menina que é louca por ela, não faz cosquinhas? A senhora é mãe há 5 anos, já devia ter aprendido que a menina sente sua falta. Por mais que eu me envolva, que ame a Isabel e tenha a chave da casa, não é a mesma coisa. E olha que eu sempre cumpri com as minhas obrigações. Usei uniforme branco, conheci o meu lugar, nunca cantei o seu marido, nunca botei a menina contra a senhora. Assim não dá, se não se endireitar, vou ter que demitir.”
Sabe o que a mãe respondeu? “E o fundo de garantia, será que eu tenho direito?"
Foi aí que a babá decidiu demitir a mãe por justa causa, para ela sair com uma mão na frente e outra atrás. Se não gostava de ser mãe então porque teve a menina?
Na primeira noite depois da demissão, a babá não conseguia dormir. Foi no quarto da Isabel. Abriu um pouco a janela, destapou seus pés. Fechou a janela de novo, cobriu seus pés com o lençol. Pegou sua mãozinha caída e ajeitou embaixo do travesseiro, como ela gostava. Sem querer, a acordou. Sonolenta, a menina sorriu e disse “boa noite, mãe.”

7 de out. de 2008

Turistas

Eles beijaram as crianças e saíram.
Beijaram fraco para não acordar e ter que explicar de novo que voltariam depois de amanhã – as crianças entenderam logo, a explicação era para eles mesmos.
No caminho para o aeroporto, ele ouvia o silêncio dela. E pensava se já beijava ela agora ou depois.
Ela pensava se tinha deixado os bilhetes na porta da geladeira, os cobertores extras, o telefone da ambulância, o termômetro ao alcance, a caixa de leite, as bananas e maçãs. Depois parou de pensar para não estragar a viagem.
Queria ter deixado morangos, mas não encontrou. Queria ser menos boba. Queria ter fugido antes.
Agora eles estavam no taxi. Eles e a mala cheia de tempo livre. Para onde mesmo eles iam?
Os dois queriam ir um para o outro.
E rir um do outro. Contar piada sem graça.
Lembrar coisas – qualquer coisa. E dizer frases sem sentido.
Dançar podia ser, mas eles não sabiam.
Queriam entrelaçar os dedos das mãos enquanto caminhassem. Depois fazer cosquinha com o dedão.
E conversar até ficar sem voz – era tanta conversa guardada que eles poderiam cruzar oceanos conversando.
A rua mais comprida seria percorrida em um segundo. Ou horas, sei lá – o relógio não embarcou porque deu overbooking.
Eles olharam para trás, para ver se não tinha ninguém seguindo.
Ufa.
Só os dois era tão bom que chegava a ser estranho.
Sabe quem pediu para vir junto? O ponto turístico. Um, não. Muitos. Ouviram um “não” bem grande.
O mapa ameaçou sair da gaveta e entrar na mala – podia ajudar a achar o caminho. Eles repetiram a mesma desculpa que deram para o city tour: bobagem, a gente já volta.
Se quisessem dobrar à direita, sim.
Se quisessem dobrar à esquerda, tá.
Se ela dissesse que era para atravessar a rua, claro.
Se ele achasse que os dois já tinham passado por ali, também.
Se a mesinha de um café os encontrasse na calçada seguinte, quem sabe.
Se uma livraria abrisse os braços, que bom.
Se quisessem comprar brinquedos, sempre.
Se um dissesse para o outro “olha lá”, onde?
Se ela perguntasse para ele tu me ama, muito.
Se já fosse hora do almoço e eles sentissem vontade de comer nada, combinado.
Se ela quisesse pegar um elevador e subir no último andar, na mesma hora.
Se ele quisesse dar um beijo sem motivo, oba.
Se o mar molhasse as barras das calças deles, e daí?
Se ela quisesse ligar para casa, não agora. Mais tarde.
Se um turista pedisse para tirar foto, uma só.
Se os raios do sol quisessem namorar com os cabelos dela, pode.
Se os pés cansassem e desse vontade de sentar na areia, a tarde toda.
Se ela inventasse uma frase poética, ele ia ouvir. E rir.
Se os beijos fossem tantos que sobrassem, deixa assim. Beijo nunca é demais.
Se as entradas para o teatro caíssem na rua, melhor.
Se ninguém juntasse do chão, entendi.
Se eles voltassem logo para o hotel, agora mesmo.
Se no outro dia chovesse ou fizesse sol, tanto faz. Só os dois já estava perfeito. Eles não precisavam de muito mais.

5 de out. de 2008

A Mansão Fonseca para Chefes Imaginários

Os quartos eram em número suficiente para acolher todos os chefes que só existiam na imaginação dos funcionários. Eles chegavam aos montes, sempre sorridentes, educados, generosos e absurdamente prestativos.
Ao circular pelos corredores da mansão, os chefes imaginários encontravam o mesmo ambiente corporativo: sala de estar de reunião, sala de jantar de reunião, cozinha de reunião, banheiro para eles e elas, divisórias no lugar de paredes, máquinas de xerox e de café em cada andar e muitas portas falsas de elevador.
O triste é que na Mansão Fonseca para Chefes Imaginários não havia para quem distribuir lucro e entregar bloquinho extra de ticket-restaurante no fim do mês. O senhor Fonseca, dono da mansão e o mais antigo chefe imaginário da casa, disponibilizava power points, flip charts, gráficos e folhas de rascunho para passar o tempo. Difícil era explicar para chefes tão perfeitos por que eles tinham sido dispensados.
No início eles não perguntavam nada. Trocavam cartões, contavam piadas. Quando passava a novidade, entendiam o que estavam fazendo ali. Nada - absolutamente nada. Eles eram fruto da imaginação de gente que não os queria mais. E sem aviso prévio, o que eles jamais fariam. Rejeição pura. Dura realidade.
Não que esses trabalhadores finalmente tivessem encontrado chefes bacanas de verdade. Muito antes pelo contrário. A decepção era tanta que eles preferiam abrir micro empresas e passar para o lado de lá do computador. Ao acreditar que eles próprios poderiam ser chefes ainda melhores que os criados por sua imaginação, mandavam os simpáticos engravatados para a Mansão Fonseca.
Esses ex-funcionários nem imaginavam que num futuro próximo também seriam fonte de inspiração para seus funcionários criarem novos chefes imaginários.
Chefes que chamavam funcionário de colaborador. Que jamais ligavam para incomodar quem saía de férias - e que obrigavam todo mundo a tirar férias. Ofereciam térmicas com suco de laranja e capuccino. Sabiam os nomes dos filhos de sua equipe. Davam abraço de feliz aniversário e aumento sem pedir. Jogavam futebol com a galera e depois pagavam a cerveja. Liberavam todo mundo mais cedo na sexta-feira. Elogiavam, motivavam, sorriam, encantavam.
Ainda bem que a Mansão Fonseca para Chefes Imaginários tinha um belo terreno ao redor. Dava para fazer um puxadinho e receber muita gente.

2 de out. de 2008

Para Roberta

Roberta, seja bem-vinda. Agora você faz parte da família. Aqui as portas estão sempre abertas e a geladeira, cheia. Já que toquei no assunto, esse é um dos motivos porque trouxemos você para cá. Nós precisamos de ajuda. Oferecemos sacada, comida light e top lavado. Além de silicone regularmente. Em troca, queremos incentivo. Sete dias por semana, chova ou faça sol. Feriados inclusive. E que o cansaço do trabalho jamais nos afaste.
Roberta, escolhemos esse nome para enxergar em você não uma esteira, mas uma amiga do peito, dos glúteos e das coxas. Alguém de carne, osso, aço e lona. Quando você ficar sozinha em casa, pode apostar que estamos no trabalho e no colégio. Se quiser ligar a TV, sinta-se em casa. Mas não espere ter a nossa companhia em domingos de sol. Temos filhos pequenos e precisamos levar as crianças para arejar.
Roberta, as academias não são páreo para você. Também São Pedro não é mais uma ameaça. Queremos ouvir o seu motor funcionando. Queremos comemorar cada quilômetro avançado, cada caloria queimada. Queremos suor e lágrimas – tudo que evite a retenção de líquidos. Com seu porte atlético, esse painel tecnológico e seus oito amortecedores, você veio para ficar.
Nos próximos meses, suas prestações vão pesar como uma bomba de chocolate no nosso extrato bancário. E pode ter certeza de que vamos pagar com gosto cada uma delas. Mas desde já precisamos fazer um pacto: você custou caro demais para ser transformada em cabide. Para pendurar roupas, preferimos os de plástico. No passado tivemos uma esteira manual que, além de ser pré-histórica, marcava muito as roupas.
Roberta, sem cenas de ciúmes. Aquela outra nem nome tinha. Os tempos são outros. Os pesos também. Para continuar com a consciência leve e a cintura fina, elegemos você como a nossa personal-tudo. Olhe como sua presença mudou os hábitos da casa. Estamos alongando antes e depois – sem pressa, contando até 30 em cada posição. Por sua causa, resgatamos o colchonete e os abdominais. Encaixamos o quadril. O jantar perdeu o foco das atenções.
Roberta, você instituiu uma saudável competição entre nós. Agora disputamos para ver quem chega primeiro. Logo vai ser preciso implementar um sistema de agendamento, talvez mandando e-mails durante o dia ou correndo ao redor da quadra. Sem dúvida, com você nossas noites ficaram mais energéticas. O suor redentor, o banho quente e depois cama. Na manhã seguinte, poder dormir mais um pouquinho e acordar com aquela sensação gostosa de panturrilha dolorida. Roberta, desculpe se repito muitas vezes seu nome. Talvez seja o meu inconsciente registrando você no álbum da família. Bem ali, pertinho das lembranças dos amigos queridos, das férias de verão, do cheiro de leite fervido na casa da minha vó, do cheiro de grama recém-cortada, do perfume do churros de doce de leite do Café Tortoni, do aroma inesquecível daquele cachorro quente de carrocinha que comi num parque em Londres - viu como preciso de você, Roberta?

1 de out. de 2008

Ata

Ninguém vai escrever isso na ata da reunião, mas pode apostar que o Miranda do 603 está de olho na Janete do 204 – justo a síndica. Não vejo outro motivo para explicar esse súbito interesse no prédio. Até o tamanho dos sacos de lixo ele comentou. Daqui a pouco o homem vai pedir para ver a planta elétrica da garagem.
Reunião de condomínio com duas horas e meia de duração é pior que chamada extra. Se o Miranda não tem consideração por quem ainda não jantou, que tenha dó da velhinha do 802 – olha ali a coitada segurando a chave da casa como quem se agarra ao terço.
A gente chega cansado do trabalho e tem que aguentar vizinho contando que achou cupim na caixa de correspondência só para impressionar. Formiga dentro do armário da cozinha é mil vezes pior. Por que o Miranda não corta o fio do telefone, se enforca no meio da sala e chama a Janete para resolver? Ela não é de se jogar fora, só que síndica é que nem irmã de amigo. Não dá para pegar porque acaba em confusão. Depois como é que o cara vai reclamar do preço da jardinagem? E se os dois brigarem, como é que vão dividir o mesmo elevador?
Ele vai perguntar sobre o vazamento. Perguntou. Eu já senti cheiro de gás no corredor, todo mundo já sentiu, coisa de nada. O prédio não vai explodir por causa disso. Se for tudo pelos ares, só vão sobrar as baratas e nenhuma delas vai se preocupar se queimou a lâmpada dicróica do hall de entrada – sim, o Miranda incluiu no seu monólogo esse requinte de decoração.
Logo hoje que a novela vai estar boa ele resolve contar que encontrou xixi de cachorro no chão da garagem. Regra Número Um: não seja louco de tocar em assunto polêmico na reunião de condomínio. É o atestado de não tenho nada melhor para fazer em casa. Regra Número Dois: qualquer animal de estimação causa polêmica. O cachorro estava apertado, promete não fazer de novo. Ruim é ouvir vizinha chamando pulguento de filhinho.
E agora o Miranda inventou de falar nas rachaduras do prédio. Outra polêmica que rende horas de reunião. Deixa o prédio envelhecer, Miranda. Você também está cheio de rugas e nem por isso vou mandar passar argamassa na sua testa. Próximo assunto, por favor – e que seja o último. Reunião de condomínio devia funcionar como leitura dinâmica. Rachadura... portaria... salão de festa... fim.
-Posso ajudar na tomada de preços. Do jeito que estão os juros, é melhor fazer cinco orçamentos.
Cinco! O homem quer fazer orçamento ou balanço contábil? A Janete não consegue disfarçar o sorriso, logo vai convidar o Miranda para conferir o balanço do colchão.
-Que gentil, Celso.
Celso! A gente mora dez anos no mesmo prédio e pensa que conhece todo mundo. Então o mané se chama Celso.
-Será que não é o caso de orçar também uma impermeabilização completa, Jan?
Jan! Esse já está tirando o lixo de outro apartamento. Jan e Celsinho ao vivo. O mundo acabou e eu não sabia.
-Quem sabe a gente faz uma votação para ver se pinta a fachada do prédio de caramelo médio ou creme claro? Mas só se os porteiros usarem gravata da mesma cor.
Esse sou eu e o meu espírito-de-porco. Se não posso comer a chuletinha que sobrou na geladeira, então ninguém vai jantar hoje. A síndica notou o sarcasmo e tomou a palavra.
-Bom, já está tarde. Proponho encerrarmos a reunião. Os assuntos pendentes eu trato depois com o sub-síndico. Para quem não sabe, é o Senhor Celso do 603.
-É muita responsabilidade, gente. Por isso eu me ofereci.
Os sobreviventes da chacina condominial não têm nada a declarar. Que conste na ata: o Miranda está matando a síndica.

30 de set. de 2008

Revista Claudia, abril 2007

O pessoal da Claudia pediu uma continuação da matéria sobre o diário da minha operação. Tirando a foto megaultrapowerexagerada, acho que ficou na medida.

Quando Claudia me convidou para investigar o que os homens realmente acham de peito com silicone, olhei para os meus (peitos, não homens) e pensei: já sei a resposta, pelo menos lá em casa. Tirando os decotes, meu marido não tem o que reclamar. Aliás, elogia sempre. Para entrar no clima dessa matéria Ricardo diria que, quase um ano depois do emplacamento, meus peitos ainda têm cheirinho de carro zero. Machista? Ih, você ainda não leu nada. É a testosterona com a palavra. Munida de um questionário e uma blusa discretinha, fui a campo ouvir outras opiniões para dividir com você. Vai ser como entrar num vestiário masculino, e isso pode ser divertido. Não garanto isenção nas perguntas e muito menos na análise das respostas. Confesso que às vezes tive vontade de quebrar o protocolo e levantar a blusa para mostrar que nem todo silicone fica artificial. Conversei com publicitários, jornalistas, engenheiros, administradores de empresas, consultores, escritores, empresários e chefs de cozinha. O que posso garantir é que os entrevistados responderam de peito aberto – com o perdão do trocadilho.

Posso citar seu nome na matéria? Talvez essa tenha sido a pergunta mais embaraçosa. Temendo constrangimentos ou cenas de ciúmes, a maioria pediu para não ser identificado - chamarei esses precavidos de um único codinome. Como foi a primeira vez que você tocou num peito com silicone? Tinha fantasia a respeito? “Fantasia, não muita. Curiosidade, imensa.” (Homem, 48) “Notei que havia algo estranho, uma presença a mais na cama.” (Martin Haag, 41) “Tinha curiosidade de saber se faria algum barulho. Tchóin? Blup? Nhec? Não fez barulho, mas foi geladinho.” (David Coimbra, 44) “A sensação foi ruim, de algo artificial, meio duro, sem flexibilidade”. (Homem, 53) “Tinha curiosidade quanto à resistência, mas o gosto é o mesmo.” (Ricardo Beck, 26) “O primeiro que toquei tinha sido recém colocado, ainda dava para sentir as bordas da prótese na ponta dos dedos.” (Homem, 49) “Tenho a fantasia inversa, de peito natural, macio, formato de pêra.” (João L. Fonte, 24) “Foi estranho, a garota estava esperando uma avaliação, era mais um julgamento do que uma curtição.” (Gilberto Della Giustina, 42) “Achei melhor que peito pequeno, mas não se compara com o original”. (Homem, 24) Qual o lado positivo e negativo do silicone? “Estará sempre lá, no mesmo lugar”. (Homem, 26) “Se bem feito, fica incrível. Se mal feito, fica horrível.” (Homem, 27) “De positivo, muitos. Como aumentar a auto-estima das mulheres e outras coisas no homem. De negativo, só se for a inveja das amigas.” (Thiago Ferreira, 27) “Ver a mulher de bem consigo mesma não tem preço. É bom para ela e, consequentemente, bom para nós.” (Homem, 26) “O lado negativo não está no silicone em si, mas em quem coloca nele a responsabilidade de se tornar mais atrativa sexualmente, exagerando no tamanho.” (Cláudio Gzelchak Jr, 44) “Se você quer introduzir um corpo estranho no seu corpo, posso sugerir um tipo melhor... além do mais esse não é permanente: ele entra e sai.” (Homem, 48) Já teve dúvida se o peito era turbinado e ficou com vergonha de perguntar? “Se for silicone, ela vai falar, faz parte da coisa contar para os outros.” (Homem, 45) “Nesse caso se consulta os amigos da roda.” (Lucas Waechter, 25) “É como discussão de pênalti: passa o replay, analisa o lance, o movimento.” (Martin Haag, 41) “É só olhar: se os dois forem iguaizinhos, é silicone. Quando os peitos são de verdade, um é sempre maior que o outro.” (Homem, 49) “É que nem cabelo de homem pintado: se nota à distância.” (Homem, 53) “Costumo acertar. Inclusive sempre passo nos testes de revista masculina”. (Homem, 24) “Fiquei surpreendido quando descobri que eram 2 mísseis, originais de fábrica, apontados para cima!” (Homem, 31) Passou por alguma situação engraçada frente a um peito com silicone? “As cicatrizes em volta dos mamilos estavam bem visíveis, tinha medo que aquelas tampinhas saltassem.” (Homem, 49) “Ouvi um ‘não aperta muito’ e fiquei imaginando a prótese se deslocando para as costas.” (Ricardo Beck, 26) “Eu era o único homem no aniversário de uma amiga que ganhou os peitos de presente e lá se foram todas para o banheiro apalpá-la. Fiquei sozinho do lado de fora.” (Vinicius Malinoski, 25) “Já vi um que era tão desproporcional que parecia cômico.” (Homem, 54) “Pedi para apertar e levei um imenso ‘não’. Todas as mulheres apertam, por que essa discriminação com os homens?” (Lucas Waechter, 25) Um striptease com peitinho ou um papai-mamãe com peitão? “Papai-mamãe com peitão!! - será que alguém vai responder diferente?” (Homem, 26). “Os dois, de preferência ao mesmo tempo.” (Thiago Ferreira, 27) “Striptease com peitinho é mais sensual”. (Jorge Nascimento, 41) “Um peitinho mais ousado é melhor do que um peitão que acha que está podendo”. (Homem, 27) “Qualquer coisa desde que com peitão. Mas também não recusaria a primeira opção”. (Heleno Schneider, 30) Mulher com silicone age diferente na cama? “É mais exibida, mais solta, mais orgulhosa do próprio corpo. Elas ficam sem vergonha, em ambos os sentidos.” (Homem, 49) “Quando é recente, algumas querem experimentar coisas que antes não podiam fazer... e viva a Espanha!” (Cláudio Gzelchak Jr, 44) “O silicone traz uma feminilidade e principalmente uma segurança que melhoram muito as atitudes da mulher na cama.” (Homem, 27) “Enquanto elas não estão adaptadas ao novo ‘modelo’, não param de olhar”. (Homem, 40) Mulher com silicone muda a forma de se vestir? "Claro! O silicone faz parte de um projeto muito amplo onde entra a postura, academia, roupas novas e até, quem sabe, um homem novo.” (Martin Haag, 41) “Se pouco peito é sem graça, peitão siliconado balançando e saindo para fora é engraçado.” (Homem, 27) “Lógico. Decotes profundos como Nietzsche.” (David Coimbra, 44) “Algumas ficam ajeitando os peitos toda hora, como se fossem uma peça de roupa.” (Homem, 33) “Óbvio que sim, para mostrar o investimento. Principalmente para as amigas, sempre as amigas.” (Homem, 49) É melhor peito com silicone na sua mulher ou na mulher dos outros? “Na minha, na dos outros, em todo mundo”. (Homem, 27) “Em todas que fiquem bonitas e se sintam mais felizes.” (Jorge Nascimento, 41) “Como um cara casado eu prefiro na minha mulher, pois o que é dela é meu”. (Daniel Pettenuzzo, 28) O silicone da vizinha sempre vai parecer mais macio que o da sua mulher”. (Homem, 49) “Na dos outros, na minha deixa natural”. (João L. Fonte, 24) “Gosto de secar a dos outros mas também de me exibir com a minha”. (Rafael Bedin, 27) Homem olha para peito por força de hábito ou porque realmente não consegue evitar? “É automático e involuntário. Desculpem-nos, mulheres, se às vezes perdemos a concentração no meio da conversa.” (Heleno Schneider, 30) “Não conseguimos evitar por força do hábito. E por força do hábito, não conseguimos evitar”. (Homem, 30) “Eu vejo aquele vale desenhado na minha frente e dá vontade de fazer parte de tudo aquilo, colocar uma casinha ali e assistir da varanda os dias passando.” (Martin Haag, 41) “Com a moda do silicone, prefiro olhar para as bundas, que ainda permanecem naturais”. (Homem, 33) Filosoficamente falando, homem gosta de peito grande porque tem saudade do tempo em que só mamava, só dormia e não tinha contas para pagar? “Não gosto só de peito grande. Dou valor aos médios empinados e aos pequenos orgulhosos também.” (David Coimbra, 44) “Filosoficamente falando, homem gosta de peito e pronto. Gosta de bunda e pronto. Gosta de mulher e pronto.” (Homem, 26) “Sempre é bom ter onde mexer, pegar, abocanhar. Homem gosta de manipular, faz parte da masculinidade”. (Homem, 45) “É tara mesmo, o instinto procura a mais bem preparada.” (Homem, 24) Se você fosse mulher, colocaria silicone? “Se tivesse peito caído, com certeza. Ou se fosse muito pequeno”. (Homem, 31) “Se tivesse um zíper, acho que sim. Para tirar e botar quando bem entendesse.”(Homem, 49) “Será que no clitóris funcionaria?” (Homem, 48) “Não, eu usaria roupas que favorecessem, sutiãs que aumentassem, e trabalharia para que a moda do peitão passasse.” (Homem, 53) “Depende: isso me deixaria mais feliz ou é porque todas estão colocando?” (Homem, 24) “Creio que não, da mesma forma que não tenho cabelo e não uso peruca”. (Homem, 42) Olhar peito com silicone e não poder tocar é como ir ao shopping sem dinheiro? “Olhar já dá uma certa satisfação, mas não substitui o roçar dos dedos, a sensação de apertar os dois ao mesmo tempo.” (Homem, 49) “Até é, mas dá pra se divertir bastante imaginando como aquela roupa da vitrine cairia bem em mim.” (Homem, 27) “É pior. Um belo par de peitos é muito mais irresistível que qualquer liquidação.” (Thiago Ferreira, 27) “Depende da dona da ‘carteira’. Tem mulher que pode estar com uma D&G e não saber carregá-la. Tem outras que podem estar com uma bolsa sem marca e ser um charme.” (Homem, 40)
Vai dizer que você também não se sentiu num vestiário masculino? Com ou sem silicone, eles olham. E olham muito. É como se os homens já nascessem com o cargo vitalício de catalogar os peitos mais bonitos, harmônicos e perfeitos. Óbvio que peitos turbinados atraem ainda mais olhares. Mas os exagerados só fazem sucesso em pornografia. Na vida real, a preferência é o peito que encha a mão e seja gostoso de apertar. Os homens que testemunharam – como disse alguém – a “experiência antropológica” do Antes e Depois adoraram as mudanças externas e internas na parceira. Já os traumatizados não guardam boas lembranças. É como disse um dos entrevistados: “Entenda que há beleza em seios pequenos, médios e grandes.” E eles dão a dica: “mais importante do que ter, é saber o que fazer com os peitos.”

Peito com silicone é como...
celular: não sei como antes eu vivia sem.
final de campeonato: decisivo.
ar condicionado: sinto mais falta no verão.
carro automático: não sei como é mas logo pego o jeito.
produto paraguaio: não confio e não recomendo.
sexo: nunca é demais.
cerveja no verão: desce redondo.
salsicha: gostoso mas é melhor não saber como são feitos.

29 de set. de 2008

Economia de guerra

A crise bateu feio na casa dos Silva de Andrade e Almeida. O sobrenome já era um excesso, precisava tudo isso? Eles poderiam muito bem viver com apenas um. Optaram pelo Silva, mais popular e condizente com a pindaíba atual.
Economia de guerra era a nova regra da casa. E que ninguém quebrasse essa regra porque não tinha dinheiro para comprar outra.
Começaram cancelando as assinaturas de jornais e revistas, passando a surrupiar a Veja do primeiro vizinho que a dispensasse no lixo. As notícias não ficavam tão velhas de uma semana para outra, sempre alguém matava alguém, um famoso descasava de outro famoso, as falcatruas seriam sempre falcatruas.
Depois de cortar até manga de camisa, respiraram fundo e atacaram um ponto nevrálgico do orçamento: a lista de supermercado. A partir de agora, supérfluos como biscoitinhos em formato de urso teriam que ganhar autorização do Ibama para entrar na lista de compras. Bebida, só água da bica. Palmito, não. Cogumelo, nem pensar (só se nascesse no vaso de plantas). Filé, fora de cogitação. E os dentes da família, alinhados a peso de ouro? Todos podiam mastigar um músculo traseiro previamente amaciado com casca de mamão. E assim, sem piedade, riscaram itens antes consumidos sem dor na consciência. Foi quando alguém lembrou dos produtos de limpeza.
A empregada, já instruída a grudar restos de sabonete até formar aquela bola multicolorida, levou um choque quando comunicaram que a caixa aberta de Omo Dupla Ação Cores Plus seria a última. Marcas líderes, o fim de uma era. Elas nada mais eram do que uma dependência estabelecida pelos meios de comunicação de massa (falando em massa, Barilla non. Falando em italiano, cancela as aulas). Quem disse que roupas de fino trato não podem ser lavadas com marca diabo? Eles ainda tinham roupas de fino trato para lavar e pendurar nos cabides (de lavanderia, mas eram cabides. Lavanderia, outro fim de outra era). Comprar Omo cegamente era um preconceito em relação a... a... a... ninguém lembrava os nomes de sabão em pó existentes no mercado. Bando de mal-acostumados.
Não demorou até que a família chegasse ao assunto mais polêmico da casa, algo sempre poupado em crises anteriores dada a complexidade do tema: o papel higiênico. Precisava comprar papel higiênico colorido? Com essência de óleo de amêndoas? Com camada ultra-extra-soft com picotes light, que não agridem a natureza da sua pele? Alfreeedo, traz o lixinha.... A filha se rebelou e disse que até abria mão do sobrenome pomposo, do palmito, da Barilla. Mas se fosse obrigada a usar lixa nas partes íntimas, sairia de casa. O pai topou na hora. Uma boca a menos.

26 de set. de 2008

Queria escrever de novo para Revista Estilo Zaffari

Escrevendo essa matéria, eu me senti meio jornalista, meio turista, meio falcatrua. Mas gostei do resultado.



Atenção: este é um texto cheio de palavras japonesas. Mas fique zen porque você não vai precisar de tradução simultânea. A idéia é justamente mostrar quantos japonismos já foram incorporados ao samba nosso de cada dia. E vice-versa.
Vamos começar com um passinho para cá, dois para lá: a palavra sushi dispensa apresentações e foi deliciosamente explicada na matéria de capa. Agora, cá entre nós, Manekineko pareceu grego para mim. Eu conhecia os simpáticos gatinhos mas não sabia que eles tinham esse nome. Amuleto típico do Japão, o Manekineko é um primo sortudo da Hello Kitty e possui diversas cores e significados: o gatinho manchado é o desejo de sucesso profissional, o preto atrai saúde e o dourado (adivinhe!) é riqueza na certa. Se o gato estiver com a patinha direita levantada, você vai encontrar um grande amor. Se for a patinha esquerda, prepare-se para receber bens materiais. Sim, os japoneses também são supersticiosos como nós. Vire a página e descubra que as semelhanças não param por aí.

O japão aqui

Enquanto os japoneses dormem no outro lado do mundo e sonham com celulares miniatura implantados no tímpano, o ocidente vive um dia-a-dia cheio de referências nipônicas e nem se dá conta. Se a palavra ocidente parece distante demais para você, esqueça a Europa e os Estados Unidos. Feche seus olhos e pense no Brasil.
Pedro Álvares Cabral ia achar uma piada se voltasse agora ao Brasil e descobrisse o nosso japa way-of-life. Nas praias, garotas com os cabelos presos com hashis revelam suas nucas tatuadas com ideogramas japoneses (eles continuam em alta nas melhores casas de tatoo do ramo). Nas baladas, essas mesmas mulheres surgem de cabelos exageradamente lisos por horas de escova, chapinha japonesa e progressiva - quem sabe tentando ser gueixas à procura de samurais nas pistas de dança.
No centro das cidades, lojas de departamento vendem filmadoras Sony, máquinas digitais Panasonic e DVDs que vêm com tudo – inclusive karaokê, o passatempo preferido dos japoneses. As empresas de locação para festas que o digam: o karaokê e suas pastas cheias de opções musicais animam desde aniversário de sete anos a jantar de gente grande. Apesar de eu não achar graça em ver a imagem congelada do Monte Fuji e a letra da música pulando na parte de baixo do vídeo, o povo se diverte e canta aos berros para então ganhar uma nota. Silêncio, alguém lá dentro da TV está pensando... seis e meio!! Parabéns, você é um excelente cantor de chuveiro!
Na hora do almoço, o feijão com arroz parece brasileiro demais. Melhor chamar um telesushi, passar por um sushi-drive ou descongelar um Yakissoba comprado no supermercado. Se a fome for pouca, um Miojo Nissin ou uma saladinha de cogumelos Shitake temperada com molho Shoyo resolvem o problema.
De tarde, adultos estressados fazem shiatsu no trabalho e idealizam um banho de ofurô no fim do dia. Já as crianças tomam Yakult com lactobacilos vivos e se divertem com a infinita quantidade de desenhos japoneses. Cavaleiros do Zodíaco, Yu-Gi-Oh, Pokémon e Samurai Jack agitam ainda mais os meninos. E para as meninas que amam a gatinha Hello Kitty, tem Ami e Yumi - inspiradas nas roqueiras japonesas mais pop da terra do sol nascente. Se tudo isso parecer coisa de criança, as adolescentes podem ligar a TV e copiar o modelito que a atriz japa-fashion Daniela Suzuki está usando. Os garotos vão preferir fazer origami com o cérebro de quem inventou essas bobagens e certamente irão escolher um videogame de lutas marciais. Ou ler Mangás – as histórias em quadrinhos japonesas que cada vez mais conquistam os brasileiros.
A moda ocidental há tempos reverencia estilistas japoneses como Kenzo, Issey Miyake, Yoji Yamamoto e Rei Kawakubo da Commes des Garçons. Quimonos e Obis vão e voltam nas passarelas, orientalizando os guardaroupas de tempos em tempos. A indústria da beleza também pede a benção aos lançamentos da Shiseido. E que brasileira seria kamikaze a ponto de ignorar as japonesas com sua pele alva e macia, a boca vermelha e pequena como uma cereja, o cabelo impecavelmente liso, os gestos delicados e o corpo esguio?
Apertando os olhos e forçando o foco no Rio Grande do Sul, descobrimos que o Japão também é aqui. Pegue seu Toyota ou Honda e vá até a Praça Japão, no coração de Porto Alegre. Ou o recanto oriental da Redenção num belo domingo de sol. Você vai ver muito gaúcho da gema tomando chimarrão misturado com chá verde. Faz bem para a saúde, sem dúvida. Mas virou moda. Quem preferir tomar mate no aconchego de casa pode escolher a poltrona perto da luminária japonesa e apoiar os pés num futon de seda. Ou então ir para a tranquilidade da sacada decorada com pedrinhas brancas e muro de bambus onde corre um fio de água da fonte presa na parede – opa, alguém andou vendo revistas zen e buscou inspiração nos jardins japoneses. Só falta um Bonsai no centro da mesa e carpas no aquário do banheiro.
Se antes eu achava exótico ter bala de algas para vender no supermercado, imagine agora que fazem no interior do Estado até campeonato de Sumô, a tradicional arte que surgiu no Japão há milênios. Por isso, minha amiga, pegue um saquê e faça um brinde a tudo de bom que vem do Japão. Desde, é claro, que os gafanhotos caramelizados permaneçam bem longe daqui.

O Brasil lá

Enquanto os brasileiros dormem e sonham com o final das CPIs, no lado de lá o Japão acorda e se prepara para outro dia de trabalho árduo – especialmente se forem os mais de 250 mil dekasseguis, descendentes de japoneses que largaram o Brasil para voltar à terra dos antepassados.
Mas não pense que eles só enxergam as linhas de montagem na sua frente. Depois de um dia puxado dentro das fábricas, nada como pegar a bicicleta e ir até o bar mais próximo tomar uma cerveja com os amigos. Se o assunto for futebol, a pedida é uma Brahma ou Antarctica (que atravessaram o mundo e continuam geladíssimas) e ficar conversando sobre a atuação do Zico, técnico da seleção japonesa de futebol. Quando o assunto terminar, os brazucas podem fazer como os nativos e apreciar as árvores de Cerejeira que florescem e formam túneis cor-de-rosa. A beleza é tanta que o garçom vai entender se você levantar o dedo e pedir “Salta um Haicai na mesa 3!” Em caso de fome, que venham o pastel e um churrasquinho de saideira.
Se mesmo bebendo ficar difícil entender o que eles falam, nada de pânico. Onde tem brasileiro, tem jeitinho para tudo. Um bom exemplo é o jornal semanal Tudo Bem, editado pela JBC – Japan Brazil Communication, que também faz a ponte aérea de mangás e livros. O jornal é escrito em português e vendido em mais de 400 locais, além da versão atualizada diariamente na internet. É um verdadeiro guia de sobrevivência para os conterrâneos que vivem no Japão e também um elo de ligação com o Brasil.
Site lembra internet, que lembra cybercafé, que dá uma vontade louca de tomar um cafezinho. Se você é como eu, movida a expressos e capuccinos, fique tranquila porque os japoneses já descobriram o kohi (do inglês coffee) e tomam o pretinho quente ou frio. É, aos poucos nós estamos invadindo a ilha. Já exportamos até manifestações culturais típicas como a festa de São João e, claro, o carnaval que no Japão se chama Matsuri e também enche as ruas de alegria. Quem sabe o próximo a cruzar o oceano é o Festival de Parintins – consigo imaginar os bois Caprichoso e Garantido dizendo arigatô no final.
Samba, música sertaneja, show do Supla e gente pulando com a Sandy e o Júnior pedem licença ao J Pop (como eles chamam o som pop nipônico) e arrancam bis da galera. E mesmo que os japoneses fabriquem ídolos na mesma velocidade com que produzem eletrônicos, sempre tem palco sobrando para o astral dos brasileiros. Até a Turma da Mônica enfrentou o jet lag para mostrar os planos infalíveis do Cascão e Cebolinha, o pêlo azul do Bidu e a gula da minha xará – aposto que a Magali deve ter adorado as melancias sem sementes que eles inventaram.
Nova Iorque ficaria com ciúmes se visse a quantidade de lojas que vendem produtos brasileiros nas ruas do Japão. Em algumas cidades, há placas em português e o brazuca way-of-life bomba nas vitrines. Falando em consumismo, nós parecemos o Tio Patinhas perto dos orientais. Pegue sua máquina digital e vá para os bairros de Shibuya e Harajuku. Você vai se sentir numa Disneylândia fashion - ou dentro de um Mangá-rave, quem sabe numa festa a fantasia de dragqueens. Imaginou algo excêntrico e bizarro? E é mesmo. Foi o jeito que a molecada encontrou para acabar com esse papo de que japonês é tudo igual. Quando a semana termina e eles tiram os sisudos uniformes do colégio, o negócio é se vestir de Anjo de Luto, Sailormoon da Sapucaí, Barbie-Pikachu, Gueixa Psicopata, Marilyn Shoyo Manson e curtir o domingo, cada um na sua tribo.
O Japão é assim, muita informação para assimilar. Ouvi dizer que tem japonesa colocando silicone no bumbum para imitar o nosso padrão estético. E não vou estranhar se a Ana Maria Braga ensinar a fazer cuscuz de sashimi no seu programa. O fato é que as culturas oriental e ocidental nunca se misturaram tanto. Viva a globalização que transformou o globo numa bolinha de pingue-pongue que a gente joga de lá para cá. Sophia Coppola que me perdoe, mas existem muito mais encontros do que desencontros com os japoneses.

25 de set. de 2008

Turbulência

-José Antônio! Você tirou foto das nuvens!
-Qual é o problema?
-Parece até que foi a primeira vez que andou de avião.
-Olha que tapete branco e fofo, Solange.
-Foto de nuvem, José Antônio. Sinceramente.
-Aqui embaixo elas são apenas coadjuvantes.
-Nuvem é sinal de chuva, isso sim.
-Mas lá de cima, a gente vê que o céu é quase nada. Existe uma cidade de nuvens, Solange.
-Só pode ser algo estragado que você comeu no vôo.
-E eu seria doido de olhar para aquelas barrinhas com tanta nuvem para admirar? Acho que as nuvens dizem "Xis" para sair sorrindo nas fotos...
-José Antônio, você está me assustando...
-As nuvens são seres mutantes, libertários e muito fotogênicos.
-Nunca vi tanta bobagem.
-Pois devia. Olhar as nuvens purifica.
-José Antônio da Silva Paes, quem é a loira nessa foto?
-É a Vanda da 6B, também uma apreciadora das nuvens.
-Desde quando você canta mulher em vôo?
-Eu sentei na 6A, ela na 6B. A gente mal se falou até eu abrir a janelinha.
-Duvido.
-Depois a Vanda achou uma nuvem que parecia o meu chaveiro em formato de J.
-E eu que desconfiava de aeromoça.
-Com toda aquela claridade eu vi melhor as coisas, Solange.
-Hã?
-Você é uma nuvem preta. E a Vanda disse para eu ter cuidado com as nuvens pretas.
-Eu sabia! Você tá de caso com essa mulher!
-A Vanda é ótima mas não é perfeita. Deve ser por isso que ela é ótima.
-Uma vagabunda aérea! E não se atreva a dizer que ela te deixou nas nuvens!
-Eu e a Vanda vamos entrar para a Tobogã Sagrado, uma seita de estudiosos da anatomia das nuvens.
-E eu vou entrar numa pensão bem gorda para falir você.
-Aquela nuvem que passa lá em cima sou eu, um novo homem.
-Demente safado!
-Solange, libera os trovões que relampejam aí dentro.
-Vou liberar é a porta da rua, desgraçado.
-Ah, cancelei nossos bilhetes para Miami. Vou doar as milhas para quem nunca andou de...
José Antônio não terminou a frase. Levou um chute na sua pista de pouso e apagou de tanta dor. Ficou atirado no chão da sala, vendo estrelas e o céu preto.
Solange deu um último soco no que sobrou do José Antônio, pegou o cartão de crédito dele, uma muda de roupa dela e foi para o aeroporto. Ia comprar passagem para o primeiro vôo que encontrasse. Já estava na hora de ver outras nuvens e de juntar suas próprias milhas.

24 de set. de 2008

Revista Claudia, outubro 2006

Minha estréia na Revista Claudia. Desde então tenho a honra de dizer que sou colaboradora da editora Abril.



Sou libriana como Claudia. Quando você ler essa edição de aniversário, vou estar curtindo o presentão que me dei de 39 anos: peitos novos. Sim, eu poderia ter escolhido um vestido, uma bolsa, uma sandália, uma viagem. Mas como disse meu melhor amigo, o que adianta passar uma semana em Salvador e continuar sem peito?
Não que os meus fossem invisíveis. Até eu fazer um regime quatro anos atrás e perder onze quilos, eles eram satisfatórios. Longe de serem o ideal. Depois que emagreci, o pouco se foi e começou a fazer falta especialmente no verão. Usando uma metáfora, é como se eu tivesse redecorado toda a casa mas havia ainda um cantinho que poderia ficar mais acolhedor e ser melhor aproveitado. Eu, que suei tanto para diminuir três números do jeans, estava louca para aumentar alguns números do sutiã. E haja coragem para assumir que uma mulher sem vocação para stripper quer ter peitão.
Talvez a indústria da lingerie mereça um busto em praça pública por ter me apresentado ao sutiã com enchimento (não... pensando bem, se alguém merece é meu amigo, o primeiro a pronunciar a palavra silicone em voz alta e olhar em minha direção). Foi enganando a torcida no dia-a-dia que percebi a diferença que faz um plus a mais. O único problema era tirar o sutiã e aceitar a verdade. Se era para viver com enchimento, então que fossem os meus.
Pesquisando na Internet descobri um universo de possibilidades: prótese lisa e texturizada, perfil alto e baixo, formato redondo, em gota ou natural. E também questões delicadas como encapsulamento, anestesia, seroma, incisão via aréola, axila, inframamário e uma lista de pode-isso-não-pode-aquilo. Aos poucos essas informações foram sendo absorvidas e meu cérebro gentilmente as transformou em decotes generosos, regatas, blusinhas de frente única. Sim! Se as mulheres fazem tudoplastia e sobrevivem cheias de hematomas para contar, por que justo comigo daria problema?
Era só não pensar que iriam abrir duas gavetas no meu tórax e guardar lá dentro o silicone (nessa hora lembrei do silicone de colocar nos móveis, na esteira, no pneu). Mesmo assim, decidi entrar na faca e algumas consultas depois perguntava se não dava para dar uma forcinha e puxar para dentro das gavetas uma pelanquinha que sobrou dos partos. Esquece. Fica para a próxima.
Ah, a primeira consulta. Por ser indicação de uma grande amiga e guru, eu já simpatizava com a médica antes de conhecê-la. Só não contava com o nervosismo. Minhas mãos suavam frio na sala de espera. Eu já estava me achando um homem de tanto olhar para seios nas ruas e revistas. Caso não conseguisse abrir a boca, era só mostrar o recorte de uma página com o par de seios mais lindos que consegui encontrar. O que eu ia dizer? Oi, meu nome é peito e quero Magali - ou algo assim. Pensei em inventar um trauma de infância, mas aí a médica abriu a porta e a cumplicidade foi instantânea.
Quando vi, tinha feito até test-drive de teta (e adorado!). "Mas não quero aquele degrau que fica em algumas mulheres. Quero um peito tipo escada rolante, que vai surgindo e subindo. Não quero me sentir gorda ou matrona. Nem virar a cover da Pamela Anderson. Não quero me arrepender. Nem de colocar muito. Nem de colocar pouco." Além de cirurgiã plástica e mastologista, eu queria que ela fosse psicóloga?
Mesmo a adorando desde o início, quis ouvir uma segunda opinião. Um cirurgião também superindicado, supercompetente e... precisava ser supercharmoso?! Ele está acostumado a ver tudo, pensei. Óbvio que viu o meu constrangimento. Fiz milhares de perguntas tentando adiar o inevitável: mostrar meus peitinhos para aquele homão. Antes que você me chame de tarada, explico. Faço parte da ala feminina que prefere ginecologista mulher porque se sente mais à vontade e acaba usando o mesmo raciocínio para outras especialidades médicas - especialmente quando tem que tirar a roupa. Na hora do vamos-ver, mirei um ponto fixo na parede e desabotoei a blusa. Ele olhou e eu murchei com sua reação: "é... tem que botar".
Não pense que foi fácil reconhecer que eu queria ficar turbinada. Depois de lidar com meu próprio preconceito, tive que abstrair o preconceito dos outros. Sobrancelhas levantaram e testas franziram quando contei minha intenção. "Silicone? Você!?". Ouvi relatos escabrosos do silicone que escorregou pâncreas adentro, a prótese que foi parar no dedão do pé. E com tanta gente passando fome no mundo, eu ia gastar dinheiro com algo tão... tão.. fútil?
Ainda bem que a maioria vibrou e as amigas fizeram contagem regressiva comigo. Cada uma sabe onde aperta o sutiã. Ou onde ele afrouxa. Conversando com diversas neo-peitudas, descobri que o único arrependimento era não ter colocado um pouquinho mais. Isso me fez repensar os mililitros. Não era só o tamanho da prótese, o que eu estava mensurando era sensualidade e auto-estima.
Lembro da primeira vez em que, meio de brincadeira, comentei a idéia com meu marido. Ricardo abriu um sorriso e me surpreendeu com um belo "e por que não?". Se eu tinha uma intenção, ele tinha segundas. O engraçado foi acompanhar as mudanças no seu comportamento. A empolgação inicial se transformou em insegurança quando ele viu que eu estava mesmo decidida. "E se eu achar que está muito decotado?". Para me ajudar, um amigo nosso o tranquilizou dizendo "mulher que bota silicone quer mostrar". Mas nada como dar tempo ao tempo. Sabe o bebê que olha para a mãe e vê uma mesa posta? Depois eu podia jurar que Ricardo olhava para mim e via uma plaquinha "Breve aqui Playground".
Falando nisso, eu ainda precisava contar a novidade para dois homenzinhos: meus filhos de 10 e 6 anos. Enquanto o menor já fez disso uma brincadeira e ficou imitando como a mãe ia ficar "tetuda", o mais velho perguntou por quê. Expliquei que se a gente não gosta de algo no corpo, pode mudar. O argumento não fez muito sentido. Aí falei que eu queria ficar bonita. Ele me olhou com aquele jeitinho amado e disse: "mas mãe, você já é bonita". É, Rafinha, vá entender as mulheres.
Se eu tivesse um numerólogo, ele se orgulharia da data que marquei a cirurgia: 7 de 7 para o verão 2007. Finalmente o dia chegou e eu estava tranquila. Optei por anestesia local e sedação – desde que eu apagasse por completo. O procedimento durou menos de duas horas e fui para casa no mesmo dia. Não doeu nada. Claro que a primeira coisa que fiz ao acordar na sala de recuperação foi espiá-los (depois fiquei sabendo que a primeira palavra que pronunciei ainda sonolenta foi “Biquíni!!”). A diferença era visível. Mas como já saí da cirurgia usando um sutiã-modelador-armadura, não consegui ver direito. Só fui apresentada oficialmente a meus peitos novos 24h depois, quando voltei para tirar o dreno. Ao abrir o sutiã, eles saltaram lépidos e faceiros. Muito prazer! E o prazer era todinho meu.
O pós-operatório foi tranquilo, mas foi um pós-operatório. De chegada, precisei de ajuda até para escovar os dentes (e me irritei muito). Fiquei presa em casa mas mantive os olhos pintados. Minhas mãos e barriga incharam tanto que parecia um dejà vú de gravidez. Morria de medo de mexer os braços e acabei tensionando de tal forma os ombros que precisei de sessões de fisioterapia. Num excesso de zelo, troquei de cama e de quarto. Dormi algumas noites sentada no sofá da sala. Fiquei sem dirigir por 2 semanas e sem fazer esporte por 45 longos dias (que medo de engordar!). Tive um princípio de inflamação em uma das cicatrizes. Mas o pior de tudo foi o desconforto de dormir de barriga para cima – eu e 7 travesseiros tentamos tantas posições que daria um Kama Sutra do Sono. Já o fator mais valioso da recuperação foi a total disponibilidade da cirurgiã, sempre tão cuidadosa, rápida e carinhosa.
A volta ao trabalho também foi um momento marcante. No imaginário das pessoas, o silicone é necessariamente extravagante. Frustrei os que esperavam me ver com estrelas prateadas nos bicos dos seios. Grande mesmo era a curiosidade de todos. Teve até uma amiga que não resistiu e me apalpou em plena luz fluorescente. Alguns olhares eram disfarçados. Outros, bem objetivos. E eu sentindo um misto de orgulho e vergonha. Se tem uma frase que diz tudo foi a que ouvi do meu chefe quando voltei de uma consulta para tirar os pontos. Ele perguntou se estava tudo bem. Repetindo as palavras da médica, falei que era para ficar em observação. Ao que ele prontamente se ofereceu: “Então observaremos!!!”.
Como uma boa libriana que pesa tudo na balança, valeu muito a pena. O resultado ficou bem como eu queria: natural e sensual. É como se eu recuperasse algo que era meu de direito. Que sensação gostosa sentir o braço roçar na lateral do seio. E comparar as fotos de antes e depois da cirurgia! Meus sutiãs novos são lindos e meus peitos, mais ainda. Plagiando aquela clássica preocupação masculina, descobri que tamanho é importante, sim.