3 de nov. de 2008

Buzina da vida

Olha que ironia. Para renovar sua carteira de motorista, forçaram Alice a estacionar em local proibido: uma sala de aula apertada com trinta adultos com cara de criança que aprontou no trânsito.
Alice não tinha multas e manejava muito bem a embreagem em aclives. Até sua foto na carteira antiga não era das piores. Nem por isso o novo código de trânsito deixou de punir essa exemplar motorista inutilizando horas preciosas da sua vida.
Por três noites de quatro longas horas cada, Alice teria que ficar em fila dupla com estranhos. Ela não sabia se eles também gostavam de cantar dentro do carro, se compravam bergamota na esquina, se passavam cera líquida, se usavam buzina de vaca.
De um lado, novatos que precisavam aprender alguma coisa. De outro, macacos velhos que tiveram suas carteiras apreendidas e não havia escapatória. E no meio a Alice, que podia estar em casa vendo novela. Mas a covarde ficou com medo de fazer a prova e bater de frente com questões de física. Dois corpos não ocupam o mesmo espaço. Correto? E se o espaço fosse a sua cama e os corpos em questão, o de Alice e seu marido?
Quando a aula começou e o ventilador de teto deu a primeira rangida, ela se imaginou subitamente dentro de um porta-malas apertado onde passaria um bom tempo até ser resgatada pelo relógio. Para completar, sentiu uma claustrofobia gramatical: o professor terminava cada frase com a palavra “exatamente”.
Os assuntos variavam. Legislação. Cruzamento perigoso. Neutralização do ponto cego. A regra de olhar para os três retrovisores a cada sete segundos. Mas o que Alice iria lembrar para sempre era a quantidade de vezes que um ser humano consegue repetir a palavra “exatamente”. Sem contar todas as suas variáveis: “Exatamente isso, pessoal”, “Exatamente isso que acontece, pessoal”, “Exatamente essas situações que acontecem, pessoal.” Exatamente esse desespero.
Algumas pessoas faziam piadas das próprias infrações, trocavam endereços de oficinas, pegavam no pé dos políticos. Dois médicos conversavam sobre cuias de chimarrão cravadas no céu da boca dos motoristas mateadores. Ou sua noção de entretenimento estava muito equivocada ou os colegas de aula estavam mesmo se divertindo.
Enquanto o professor falava da necessidade de enxergar os pneus do carro da frente, Alice botou seu cérebro em ponto morto e passou a analisar a calota sem cabelo de um homem. Um, não. Dois, três, quatro, cinco. A calvície masculina aumentava como os buracos nas ruas. Haja asfalto e implante para remendar tudo.
Depois Alice não pensou em mais nada. Precisava concentrar esforços para vencer o sono e não roncar na frente de estranhos. O rangido do ventilador de teto parecia música de ninar. O princípio da direção defensiva era ser mais tolerante (mais?) e antecipar os atos dos outros motoristas. Ah se eles fossem tão previsíveis quanto os exatamentes do professor. Os olhos de Alice agora fechavam em sincronia com os rangidos. Exatamente assim, pessoal.
Pausa para o intervalo com cafezinho morno e bolachas moles. As distrações disponíveis eram 1) esticar as pernas, 2) ficar em pé e se apoiar nas divisórias para ver se alguma caía, 3) encarar a fila do banheiro, 4) interagir com o pessoal, 5) desistir das aulas e dirigir sem carteira.
Alice preferia estar no maior engarrafamento do mundo. Ou bem estacionada no sofá de casa.

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