29 de ago. de 2008

Revista Claudia, junho 2007


Eu e o escritor Antônio Prata fomos convidados a escrever para o especial de Namorados, mostrando a visão de um homem e de uma mulher sobre o mesmo tema: uma noite inesquecível. O pessoal da revista se surpreendeu porque o texto dele foi todo romântico e o meu, mais fuerte.

Salto alto

Bem que ela leu em algum lugar que o ponto G da mulher é o cérebro. Foi só ouvir aquela frase para o sexo automático de uma noite de terça ser promovido à pura sacanagem:
-Não tira o sapato...
Como ela não tinha pensado nisso? Um fetiche assim, sem mais nem menos! A lingerie mais cara do mundo não conseguiria ser tão provocante no momento. Então o escarpim que ela usou um milhão de vezes, já levemente desgastado na ponta e com a borrachinha do salto precisando de conserto, ainda mantinha seu sex appeal. Quinze centímetros de prazer. Bico fino e sensual. Couro preto e devasso – ih, será que era couro mesmo? Impossível não lembrar que o velho escarpim de guerra foi seu parceiro fiel em tantas reuniões chatas, nas rapidinhas até o supermercado, no enterro da tia Inês semana passada.
-Sério?
-Sério.
Hummm. O poder de um salto alto no imaginário masculino! Quanto mais o escarpim cobria seus pés, mais ela se sentia nua. Os dois ainda nem haviam iniciado os trabalhos e o seu cérebro já se contorcia todinho. Impressionante como uma terça-feira que começou com “tira os cotovelos da mesa” e “eu falei para tirar os pés daí” poderia terminar com um sexo tão gostoso. Cadê as crianças? E a louça para botar na máquina? Sei lá, essas preocupações só fazem sentido em um ambiente familiar, não no motel de beira de estrada que o apartamento se transformou.
-Não tiro o sapato se você nunca mais tirar as mãos de mim...
Hummm. O poder de uma boa pegada. Olha só como a rotina e as contas vencidas atrapalham um relacionamento. Mãos para cá, bocas para lá. E ela pensando que nenhuma caixa de leite faltando na despensa tem o direito de afastar duas pessoas que se amam.
Hummm. Onde eles estavam mesmo? Transando como nos velhos tempos. E não é que ele continuava tarado? Ou sempre foi e o vazamento da pia, inacreditavelmente, desfocou sua atenção. Naquela noite, tudo era cama redonda: o braço retangular do sofá, o banquinho quadrado da cozinha, o teto da sala que refletia sombras comco se fosse um espelho. Quando eles finalmente chegaram no quarto, o safado do escarpim pisoteou as fronhas limpas, chutou os travesseiros, rasgou o lençol e – sabe-se lá como – acertou a dicróica da mesinha de cabeceira.
Eles nem perceberam que o filho levantou, foi no banheiro fazer xixi e voltou sonâmbulo para cama. Nem ouviram que os vizinhos de baixo ouviram tudo. Dormiram já com a luz do sol espiando pelo buraco da fechadura. Amontoados num só lado da cama, como se a king Size fosse um colchãozinho de solteiro.
Que delícia acordar no outro dia e cada um juntar os braços e pernas que eram seus. O melhor de tudo foi na hora do banho, quando ela lembrou que as liquidações de sapatos estavam começando.




Um comentário:

Krisley disse...

Depois de quase um ano que tu postou isso eu vim ler...
E lembrei que li essa revista e tinha amado esse texto!!!
Por isso que eu adoro ler esse blog...

Parabéns!