
A rua está cheia de personagens, preste atenção. Mesmo que você não vá escrever sobre eles, pode acompanhá-los como num livro - mas com a sensação de estar sempre relendo a mesma página já que você não sabe nada sobre o tal personagem, apenas cria hipóteses.
Quase todos os dias, na hora do almoço, eu vejo o casal abraçado. É assim que chamo os dois. Abraçar é lindo, caminhar abraçado todo santo dia requer coordenação corporal e sincronismo.
Ele anda com o braço por cima do ombro dela, um braço pesado e possessivo. Ela se encaixa no abraço e ainda segura a mão que sobrou lá em cima. É como se quisesse segurar bem o abraço. Os dois parecem duas peças de Lego, daquelas que é melhor guardar juntas na caixa e não perder tempo desgrudando.
Reparei que a mulher nunca está com bolsa, o que facilita. Às vezes eles carregam uma sacola ou guarda-chuva nas mãos que permanecem livres - os membros superiores reservados ao abraço têm lugar cativo no corpo do outro.
Acho lindo um casal de mãos dadas. Adoro abraçar e ser abraçada. Mas caminhar sempre com os ombros transformados em prateleira?! Daqui a pouco surge um ortopedista e forma um triângulo amoroso.
Cada vez que eu vejo o casal abraçado, crio hipóteses:
-É namoro novo
-Ele tem labirintite e ela dá um suporte disfarçado de abraço
-Eles têm medo de assalto e por isso se protegem
-Ela força o abraço porque no meio do caminho tem o restaurante do ex-marido, que sempre espia os dois passarem e se arrepende da separação
-Ele força o abraço porque não abraçava a ex-mulher antes
-Eles trabalham no mesmo lugar e como "onde se ganha o pão não se come a carne", no intervalo do almoço se abraçam ininterruptamente pra compensar -Eles treinam pra uma promoção de shopping, daquelas que premia o casal que ficar abraçado por mais tempo
-Eles são mais velhos, sabem que o tempo ruge, então acumulam milhas com os abraços
-Ele tem uma perna mais curta que a outra, apoiado assim não precisa de bengala
-Ela é friorenta e usa o braço dele como echarpe
O que eu sei é que lá no fundo os invejo. Eu e todas as mulheres do bairro.
Foto: Flickr - Ann Schuwaner