Ela sabia que, mais cedo ou mais tarde, isso iria acontecer. A imobiliária mandou uma carta multando seu apartamento. De todos os moradores do prédio, Marina era a única que não fazia coleta seletiva. E foram os próprios vizinhos que a deduraram. Como explicar para um bando de solteiros que crianças em idade escolar são caminhões coletores de lixo seco?
Era garrafa plástica e lata de leite em pó para criar instrumento musical. Era bandeja de isopor e pote de iogurte para fazer a réplica da Praça da Matriz - isso quando os primos não pediam socorro para construir o cais do porto. Se Marina enfileirasse todos os rolos de papel higiênico e de toalha de papel que separava num ano letivo, daria para fazer três voltas no quarteirão. Fora as caixas de ovos, de leite, de sucrilho, de sabonete, de gelatina, de remédio. Nem os arquitetos faziam tantas maquetes quanto os alunos hoje em dia. Até vasculhar o lixo seco alheio Marina já teve que fazer por causa de uma professora que pediu sucata de véspera e o estoque estava a zero (a única caixa disponível era de KY, não dava pra mandar).
E assim surgia um círculo vicioso. Quanto mais embalagens Marina juntava, mais o colégio pedia. A saída era mobilizar a família inteira colocando até os avós no tráfico de lixo seco. E mesmo depois de despachar uma remessa, seu cérebro continuava mandando mensagens: junte sucata, muita sucata, sucata, sucata.
Nos supermercados, se tivesse que escolher entre uma embalagem sem graça e uma com alto poder de mutação, Marina levava a segunda. Enquanto pessoas normais procuravam as ofertas, ela vasculhava os recicláveis. Nos restaurantes, não saía sem arrecadar tampinhas de garrafa e anéis de latinhas pelas mesas. Nas praças de alimentação, dava vontade de levar uma daquelas latas grandonas de aço com portinha e tudo dentro (tá bom, ela chegou a abordar uma tia da limpeza, que logo chamou o segurança).
Cada vez que achava nas agendas dos filhos um bilhete solicitando encarecidamente sucata, Marina se sentia tirando o sustento de uma família de papeleiros. Se não colaborava com o colégio, falhava como mãe. Se não ajudava os pobres, falhava como cidadã.
A multa da imobiliária foi a gota d’agua. Ia mudar de edifício. Ia trocar os filhos de colégio. Ia arrecadar assinaturas de outras mães que não suportavam mais catar lixo. Então Marina se deu conta: elas, as mulheres com dinheiro, estavam virando papeleiras de luxo. A ironia do sistema capitalista!
Talvez se explicasse seu dilema para os vizinhos solteiros, eles poderiam se comover e pedir o cancelamento da multa. Ou ceder embalagens de pasta de dente. Marina estava pensando em qual apartamento bater primeiro quando encontrou ouro puro. Alguém tinha acabado de comprar uma impressora e não quis a caixa (como não?!). Nem o isopor, nem o plástico de bolinhas. A caixa era tão grande que podia virar uma Fundação Iberê Camargo. Claro que foi direto para o porta-malas do carro. Era início de mês, trabalhadores com dinheiro no bolso, varejo aquecido. Na volta, Marina subiu pelas escadas e foi parando de andar em andar para ver se não arrecadava mais nada no meio do caminho.
Era garrafa plástica e lata de leite em pó para criar instrumento musical. Era bandeja de isopor e pote de iogurte para fazer a réplica da Praça da Matriz - isso quando os primos não pediam socorro para construir o cais do porto. Se Marina enfileirasse todos os rolos de papel higiênico e de toalha de papel que separava num ano letivo, daria para fazer três voltas no quarteirão. Fora as caixas de ovos, de leite, de sucrilho, de sabonete, de gelatina, de remédio. Nem os arquitetos faziam tantas maquetes quanto os alunos hoje em dia. Até vasculhar o lixo seco alheio Marina já teve que fazer por causa de uma professora que pediu sucata de véspera e o estoque estava a zero (a única caixa disponível era de KY, não dava pra mandar).
E assim surgia um círculo vicioso. Quanto mais embalagens Marina juntava, mais o colégio pedia. A saída era mobilizar a família inteira colocando até os avós no tráfico de lixo seco. E mesmo depois de despachar uma remessa, seu cérebro continuava mandando mensagens: junte sucata, muita sucata, sucata, sucata.
Nos supermercados, se tivesse que escolher entre uma embalagem sem graça e uma com alto poder de mutação, Marina levava a segunda. Enquanto pessoas normais procuravam as ofertas, ela vasculhava os recicláveis. Nos restaurantes, não saía sem arrecadar tampinhas de garrafa e anéis de latinhas pelas mesas. Nas praças de alimentação, dava vontade de levar uma daquelas latas grandonas de aço com portinha e tudo dentro (tá bom, ela chegou a abordar uma tia da limpeza, que logo chamou o segurança).
Cada vez que achava nas agendas dos filhos um bilhete solicitando encarecidamente sucata, Marina se sentia tirando o sustento de uma família de papeleiros. Se não colaborava com o colégio, falhava como mãe. Se não ajudava os pobres, falhava como cidadã.
A multa da imobiliária foi a gota d’agua. Ia mudar de edifício. Ia trocar os filhos de colégio. Ia arrecadar assinaturas de outras mães que não suportavam mais catar lixo. Então Marina se deu conta: elas, as mulheres com dinheiro, estavam virando papeleiras de luxo. A ironia do sistema capitalista!
Talvez se explicasse seu dilema para os vizinhos solteiros, eles poderiam se comover e pedir o cancelamento da multa. Ou ceder embalagens de pasta de dente. Marina estava pensando em qual apartamento bater primeiro quando encontrou ouro puro. Alguém tinha acabado de comprar uma impressora e não quis a caixa (como não?!). Nem o isopor, nem o plástico de bolinhas. A caixa era tão grande que podia virar uma Fundação Iberê Camargo. Claro que foi direto para o porta-malas do carro. Era início de mês, trabalhadores com dinheiro no bolso, varejo aquecido. Na volta, Marina subiu pelas escadas e foi parando de andar em andar para ver se não arrecadava mais nada no meio do caminho.
2 comentários:
Opa Dra Magali
bom poder ler teus textos aqui.
Ja ta favoritada.
Abraços
Rodrigo Sanvicente
Dica do Mini.
Gostei!
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