2 de set. de 2008

Figuração... Ação! parte 3

Não sinto minhas pernas. Se não fosse o maldito interfone tocando na cozinha, eu ficaria deitada o resto do dia. Preciso sair da cama, rastejar até o banheiro e alcançar a gavetinha dos antinflamatórios - mas de que jeito? As coxas e panturrilhas estão inutilizadas, os joelhos não respondem, os pés talvez estejam deformados para sempre. Como os figurantes deficientes atuam em um nicho muito específico da publicidade, provavelmente vou passar fome.
O último set foi um massacre. Um comercial de carro com três diárias e uma figuração de cinquenta loucos atravessando a rua sem parar. Por que não concentraram a filmagem no luxo do banco de couro e no porta-malas, que era bem espaçoso? Quanta lata gasta à toa. Negativos que dariam para impulsionar o cinema nacional foram desperdiçados sem piedade.
O diretor era gringo, então só quem tinha passado do basic three conseguia entender o que ele dizia. Trouxe na mala sua assistente, uma nipônica com forte sotaque alemão que dava satisfações apenas para o cliente. Na figuração chegava uma versão mal traduzida, como se tivesse um cabeção na nossa frente tapando parte das legendas. Tentei pegar o plano de filmagens com o pessoal do figurino mas não consegui. Medo de espionagem, cópias numeradas e registradas em cartório. Será que eu estava perdendo dinheiro e não sabia? Alguém roubava roteiros para vender aos concorrentes?
Pelo que entendi, observando a linguagem universal dos palavrões, o diretor não estava encontrando o timing perfeito para a travessia da rua. Queria que os figurantes posicionados do lado esquerdo da calçada fossem ao encontro dos figurantes do lado direito. O problema é que sua assistente era canhota e, inconscientemente, invertia tudo. E o gringo ficava cada vez mais vermelho de raiva. Gritou tanto que alguns colegas pularam o cordão de isolamento, se misturaram com os curiosos e sumiram, sobrecarregando os sobreviventes da figuração.
Acho que foi nessa hora que senti a primeira cãimbra. Uma fisgada descomunal subiu pelo calcanhar, passou pela meia-perna depilada, cruzou a coxa já cabeluda e atingiu em cheio a mata atlântica, 45 dias atrás denominada virilha. Ainda bem que não tinha médico no set, senão eu ia passar vergonha. A partir daquele momento, gemi baixinho e tentei disfarçar a dor jogando meu peso para a outra perna. Não que eu pese tanto assim, mas piorou. As cãimbras vieram em bando, fazendo eu caminhar como um espantalho e passar a falta idéia de que estava debochando da narrativa. Logo eu, que levo tão a sério minha profissão.
Preciso levantar. O interfone parou de tocar ou meus ouvidos também se entregaram? Sigo sem condições de puxar o lençol, o que dirá ir até o banheiro.Vou mentalizar o antinflamatório e salivar bastante para engolir o comprimido. Amanhã tem outra filmagem - desde que não seja alguma propaganda de maratona, eu dou um jeito.
(continua)

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